Uma blitz realizada ontem pelo Ministério Público lacrou duas clínicas de dependentes químicos. A denúncia foi feita por um interno que conseguiu fugir do local há duas semanas. Segundo ele, as pessoas atendidas eram espancadas, torturadas e mantidas em cárcere privado. As duas clínicas, intituladas Casa de Recuperação Renascer em Cristo, são ligadas à igreja evangélica Assembléia de Deus e já vinham sendo investigadas pelo MP desde 1999, mas na ação, os promotores encontraram as provas que buscavam.
Na primeira clínica, 21 menores, com idades entre 11 e 17 anos, estavam internados devido ao uso de drogas. De acordo com ele, os funcionários do local os espancavam e os mantinham sob efeito de remédios controlados. Uma criança de 11 anos relatou ter apanhado diversas vezes dos “auxiliares”, como são chamados os funcionários da clínica. No momento da ação, o menino, assustado, dizia ter medo de ser levado para a Febem.
Já na segunda clínica, localizada na rua Appa, os promotores encontraram uma situação ainda mais grave. Os internos denunciaram que eram vítimas de tortura e mantidos em cárcere privado. No local, foram encontrados remédios de venda controlada e pedaços de pau. Nos quartos, os beliches bloqueavam a entrada dos banheiros e os 55 internos precisavam se revezar em apenas um. Outra irregularidade encontrada pelo MP foi a presença de seis adolescentes na clínica destinada aos adultos. Pacientes nitidamente psiquiátricos também dividiam o espaço com os dependentes químicos.
Uma terceira casa, localizada na rua Capitão Pereira Lago, abrigava apenas mulheres dependentes de drogas. No local não foi encontrado nenhum indício de maus tratos, porém não havia alvará de funcionamento. A Fiscalização Geral deu prazo de 30 dias para que a situação seja regularizada.
Internos relatam casos de maus tratos
“Quando cheguei aqui foi para ter uma melhora de vida, mas não foi isso que aconteceu”, conta o interno R.F.S, de 18 anos.
O jovem é dependente de crack e em quatro anos já foi internado diversas vezes no local.
Na manhã de ontem, ele apresentava um ferimento no olho direito, o rosto estava inchado e dizia que estava há cinco dias dormindo, devido às altas doses de remédio que teria sido obrigado a tomar. Um adolescente de 17 anos afirmou que quando alguém desobedecia uma ordem era obrigado a tirar a roupa e ficar ajoelhado.
“Depois disso, o funcionário obrigava um outro interno a bater naquele que estava ajoelhado”, denuncia.
“Me bateram com mangueira”
Internado para desintoxicação, o enfermeiro F.S.P. relata momentos de horror. “Eu apanhei duas vezes. Primeiro quando fugi para denunciar o que estava acontecendo. Mas eu estava dopado e me pegaram a uns 10 quarteirões dali. Me bateram muito com mangueira, ripa, tapas, pontapés e socos. Batiam muito mesmo”. Ele ainda comenta que todos os internos apanhavam. “Alguns ficavam deitados com as pernas e braços amarrados na cama por dois, três dias”.
Outros internos, F.A.Z, de 17 anos, B.A.A, de 15 anos e R.T.D.Z, de 40 anos, também contam o dia-a-dia do local. “Toda sexta era dia de ligação para a família. Sempre ficava um auxiliar ao lado e se a gente falasse alguma coisa que eles não gostavam, o interno apanhava”, informaram.
Eles ainda disseram que para apanhar os internos eram colocados pelados no quarto. “Após a sessão de tortura, eles chamavam outros internos que eram obrigados a ajudar a bater. Quem não fizesse, apanhava também”, disse F.A.Z. Ele conta que um coquetel de medicamentos era dado aos mais exaltados. “A gente dormia direto uns dois ou três dias”.
Alimentação
R.T.D.Z. diz ainda que “nós vivíamos sob o regime da opressão, da violência física onde imperava para todos nós a fome”. Sentimento reafirmado por B.A.A. “No almoço só ofereciam arroz, feijão e legumes. Carne só o pessoal da diretoria comia. Na janta era sopa todos os dias”.
Sentado no degrau de uma escada da DIG, chorando bastante, e mostrando os hematomas nas solas dos pés provocados, segundo ele, por uma surra que levou com pedaços de pau, o interno A.E.V. tenta se recuperar da dependência por cocaína. Ele aponta outras marcas de torturas que sofreu como socos no pescoço e tapas no rosto.
“É muito humilhante e não tem como fugir. Eu tentei, mas me pegaram e me bateram muito”, contou no momento em que um dos acusados passava ao lado. “Aquele ali que me colocou o capuz preto e bateu”, completou o interno.
Pais se revoltaram na delegacia
Durante a tarde, na Delegacia de Investigações Gerais (DIG), familiares dos internos buscavam informações e orientações sobre o que estava acontecendo. A maioria estava revoltada com a descoberta das torturas. “Não sei nem o que pensar. Pensei que fosse uma clínica séria”, disse Paulo Donizetti, pai do adolescente J.P.N., de 16 anos.
Ao lado dos pais, o jovem explicou que jamais recebeu qualquer ajuda da mãe durante o período que ficou internado. Questão imediatamente rebatida por Paulo Donizetti. “Que absurdo. Toda segunda nós mandávamos bolachas, doces, refrigerantes e eles não entregavam”, indignou-se o pai.
Outro pai revoltado era Gilson, que veio da cidade de Passos-MG buscar o filho. “Meu filho estava judiado nas ruas, nas mãos dos traficantes. Aqui ele estava melhorando mas aconteceu isso. Só que sou um cidadão que contribui com impostos todo mês e o governo deveria, então, criar um local para atender esses jovens”, disse o pai.
Diretor nega as denúncias
O diretor da entidade, Edson Pereira dos Santos, concedeu uma entrevista exclusiva ao A Cidade, onde negou todas as denúncias. Algemado e a poucos minutos de ser encaminhado ao Centro de Detenção Provisória, ele disse que “é mentira, não tinha isso. Essa é a versão de um dependente químico quando quer ir embora. É ansiedade da droga”.
Ele confirmou que cobrava R$ 300,00 de matrícula e mais R$ 300,00 de mensalidade e voltou a afirmar que jamais bateu em interno. “Não tinha ripa nem mangueira. Nunca amarramos ninguém. O tratamento era com amor”, disse Santos.
O acusado disse estar “preparado” para uma temporada na cadeia. “Não esperava isso dos internos. Se não ajudamos, não atrapalhamos. Mas, fazer o quê?”. No final, ainda afirmou que pretende voltar a trabalhar na recuperação de drogados. “Com certeza. Se eu não montar uma clínica, alguém pode abrir e precisar de uma ajuda para instrução. Se me quiserem para melhorar, estarei à disposição”, concluiu.