Freud descobriu que muitos dos problemas psicológicos (se não todos) que um adulto apresenta começam na infância. Essa informação é, hoje em dia, de conhecimento público. Após 110 anos, está aceito que a infância é um momento em que muitas coisas podem prejudicar o futuro desenvolvimento da criança. Infelizmente, ainda assim pouco se faz para prevenir o pior, mas essa é uma outra questão.
Jung amplia o raio de visão freudiana e observa que há mais sob o céu do que a simples psicanálise freudiana imagina (parafrasando o Hamlet de Shakespeare). Como dizer, “o buraco é mais embaixo”. A relação de causa-efeito teorizada por Freud não se aplica sempre assim de maneira imediata. A psique é complexa e vários elementos confluem para produzir o “problema”, problema que Jung chama de complexo, porque justamente é um conjunto de fatores unidos pela experiência de derrota do ego.
Quando o movimento de expansão e crescimento do ego é bloqueado, impedido ou vencido, por forças externas ou internas, há a derrota, derrota esta que produz uma espécie de nó. Imaginem um sapo gigantesco que uma pessoa engole. E fica parado na garganta. Toda vez que a pessoa ouvir um coaxar mesmo que indistinto, distante, ou só vagamente parecido, estremecerá e começará a reagir compulsoriamente, como se estivesse de frente àquele bendito sapo que um dia engoliu e ainda não desceu. Fácil encontrar pessoas assim. Quem já não emitiu um comentário inocente que, para nosso espanto, é recebido como se fosse uma punhalada no estômago pela outra pessoa, ou uma ofensa, ou uma crítica? É como passar a mão de leve perto de uma ferida profunda e não cicatrizada, o efeito não é de carícia, mas de tapa. (Por isso também relacionamentos são tão complicados.)
AS FERIDAS DO CORPO E DA ALMA
Assim é com a psique. Se o corpo tem suas feridas, a alma tem as mesmas (porque quando recebemos um soco num olho não é só olho que dói) e muitas outras, em diferentes níveis de profundidade. Jung descobriu padrões de comportmento que levam à repetição irracional e não intencional de situações que parecem estar além da consciência e da escolha individual. Chamou-os de arquétipos. Arquétipos não carregam conteúdos pessoais. O arquétipo materno, por exemplo, não inclui o meu modo de ser mãe, mas inclui minha tendência e meus instintos com relação aos cuidados com a prole, proteção, nutrição e educação. Como farei isso, com quais valores, qualidades ou fraquezas será meu conteúdo pessoal. O arquétipo dá só o formato padrão, por assim dizer.NEM TODOS OS FILHOS DE PAIS RUINS SERÃO RUINS
Agora, surge a questão interessante. Nem todos os filhos de bons pais são por sua vez bons pais, como nem todos os filhos de pais ruins serão ruins com seus filhos. Por que em alguns o arquétipo se “despertaria” e em outros não, apesar de ter tido a criação para isso? Ou por que algumas crianças apresentam comportamentos incompreensíveis no contexto famíliar ou fazem de um estímulo considerado inócuo pelos outros membros da família um problema grave? Por que reagem conforme um padrão desconhecido aos pais? Como é possível, portanto, que possa existir complexos tão intensos (como por exemplos, pesadelos, fobias, crises nervosas, comportamentos exagerados) em crianças pequenas com tão pouca experiência de vida?Porque, diz Roger Woolger, a criança já nasce com seus complexos. Já nascemos bichados, gente! Não só aquela fantasiosa tabula rasa da crença ingênua do passado não existe, como a psique não está sequer fresca e “pura”. Não é só de arquétipos assépticos e impessoais que está cheia a psique mas de questões irresolvidas muito pessoais e prementes, cheias de emoções e de paixão. Como ele pode afirmar tal coisa? Pelos casos clínicos, pela experiência. Quem leu “As Várias Vidas da Alma”? Um psicoterapeuta junguiano que descobre as vidas passadas, vai estar literalmente inundado por relatos de sessões nas quais histórias de outras vidas surgem espontânea e coerentemente. O que Woolger percebe é que por baixo de um problema da infância - sim, Freud também tinha razão, muita coisa começa lá - há outra problemática. Uma camada mais profunda emerge, é tudo uma questão de saber perguntar, saber enxergar e saber ouvir - o que são as grandes qualidades de um cientista.
KARMAS PENDENTES
O que se descobre nessas regressões é que há situações não resolvidas - o karma - que ficaram pendentes e continuam sendo a pedra no sapato. Incomodam, doem, perturbam. Toda irregularidade no caminho vai ser notada com mais acuidade por quem tem uma pedra no sapato, não é verdade? Aí o terapeuta tradicional fala: bom, tire o sapato e vamos ver essa pedra. A pessoa tira o sapato e não encontra pedra nenhuma. Mas há um pequeno inchaço no pé. Vai ao médico e não descobre nada. É hora de fazer uma sessão de regressão. A pedra física não existe mais, mas ficou o sinal dela, a marca dela num plano que não é mais físico (é o etérico) mas é acusado pelo físico - que seja este o corpo físico ou nossa vida material, nossa forma de viver.o transe do tabú cristão Como nossa psicologia ocidental está sob o transe do tabú cristão que bane vidas passadas, não resta que apelar aos irmãos orientais que falam de reincarnação há milênios (assim como o próprio cristianismo acreditava nos primeiros séculos). Na versão ioga do que chamaríamos de psicologia do karma, o processo está explicado da seguinte maneira: as experiências da vida deixam vestígios (gosto muito do exemplo de Woolger do vestígio que deixa um perfume; todos conhecemos essa sensação e ela combina tão bem com aquela do dejá vu). Esses vestígios (chamados de vasana) podem ser ativados produzindo recordações ou aflições. Essas aflições são padrões de comportamento e pensamento que tendem a se repetir - e chegamos a coação à repetição da qual falava Freud, ou às fobias. Para quantos medos tem-se uma causa nessa vida? Isso tudo é o chamado de resíduo kármico, detritos de experiências passadas não digeridas por completo. O pé quebrado 200 anos atrás é o pé que entorta hoje e, às vezes, não sara direito. A morte violenta ontem por afogamento, é o medo de nadar hoje. E assim vai. Esses são somente exemplos grosseiros, pois as histórias, as nossas histórias, são mais sutis, mais bonitas, mais dolorosas e profundas.
VIDAS PASSADAS
Para quem não consegue acreditar em vidas passadas - que sequer é uma questão de acreditar, mas simplesmente de “ver com os próprios olhos” - proponho uma interpretação alternativa. Entre a crença que não existe outra vida além dessa e a outra que acredita que quem viola essa crença é um desequilibrado, existe uma terceira possibilidade (e Jung aqui vem em socorro): o inconsciente faz emergir conteúdos psíquicos que precisam ser elaborados. É como com um sonho, cada um tem os seus, únicos e pessoais. Se aparecer um pesadelo, ele precisará ser trabalhado para que seja dissolvido, e talvez amanhã vai surgir mais outro conteúdo e depois outro. Cada um com seu quinhão de material psíquico para ser elaborado e integrado na consciência.A história humana está cheia de atrocidades, injustiças, dor e sofrimento: a gente acreditava que ia se safar assim, facilmente? O que passou, passou? O currículo não se apaga virando a cabeça para outro lado (ou nascendo em outra vida). Somos humanos, carregamos nossa parte bichada de humanidade (assim como a boa). Nos cabe trabalhar. Transformar a pedra no caminho em areia fininha e lisa, tão agradável que nem dá vontade de parar de andar...