Só em 2018, os números oficiais indicam que 283 pessoas de diversas nacionalidades morreram na travessia da fronteira entre o México e Estados Unidos. Nos últimos cinco anos, há registro de apenas três casos de desaparecimento e dois falecimentos confirmados de brasileiros na tentativa de travessia. Esse total não representa a realidade, de acordo com o próprio Itamaraty.
No início de julho de 2019, uma menina identificada pela família como brasileira desapareceunas águas do Rio Grande. Ela estava com a mãe. Até hoje o corpo não foi encontrado.Houve, ainda, o desaparecimento de um grupo de 19 pessoas em travessia pelo mar, em 2016. Mas esse número, diz o governo, é apenas indicativo, pois o registro é resultado de informações enviadas voluntariamente por autoridades estrangeiras ou por familiares e amigos dos brasileiros. É possível que haja incidentes que não tenham sido comunicados ao Itamaraty e, portanto, a quantidade provavelmente é maior, diz o órgão.
O brasileiro Weverton Tiago Silva Prado, de 33 anos, é um dos donos da Padref, uma empresa de serviços funerários em Massachusetts, que ajuda a fazer a repatriação de corpos de brasileiros que morrem no exterior.
Tiago relatou à BBC News Brasil alguns casos com que teve de lidar ao longo de sua carreira. Ele se comove ao lembrar de algumas famílias que atendeu, especialmente aquelas cujos parentes morreram tentando atravessar de forma clandestina a fronteira do México com os Estados Unidos.
Alguns parentes de mortos nessas circunstâncias concordaram em relatar suas histórias à BBC News Brasil na condição de terem seus nomes alterados. Em alguns casos, por serem eles mesmos imigrantes indocumentados, temem ser identificados pelas autoridades edeportados. Em outros, têm medo de retaliação de coiotes - como são chamados aqueles que organizam as travessias ilegais pela fronteira. Há também casos em que querem evitar que o resto da família reviva o trauma da perda.
Suas histórias revelam o que motiva brasileiros a deixar o país e encarar os riscos da travessia e o desconhecido num lugar novo, além de como são organizadas as viagens, o que pode dar errado e como isso tudo é vivido pelas pessoas que estão no Brasil ou aguardam seus maridos, sobrinhos, primos nos Estados Unidos.
Não é uma travessia simples
Tanto Tiago quanto outras pessoas que lidam com imigrantes ilegais dizem que muitos têm ilusão de que a travessia da fronteira é "simples", como era há décadas. Mas desde o atentado às Torres Gêmeas, em 2001, o governo reforçou a segurança nas fronteiras e nos últimos anos tem tentando dificultar a entrada de ilegais, o que tem acarretado numa série de mortes.
Além disso, dizem, a fronteira se tornou mais perigosa com o acirramento de conflitos ligados ao tráfico de drogas.
"Já me aconteceu de não conseguir tirar um corpo do México porque o lugar onde ficava a funerária do lado mexicano estava em meio a uma guerra entre policiais e traficantes. A gente sofrendo para ajudar a família e o corpo lá".
Isso aconteceu, por exemplo, no caso de Wesley, um dos brasileiros mortos na fronteira nos últimos cinco anos. Seu corpo foi achado no Rio Grande, do lado mexicano e só foi enviado ao Brasil semanas depois. "Quanto mais tempo passávamos sem o corpo, mais a dor aumentava", lembra um tio.
A causa de sua morte até hoje não é clara. Os parentes suspeitam que ele tenha sido assassinado pelos coiotes.
"Se a pessoa tem algum conflito com eles, se não quer carregar drogas ou algo assim, eles matam", diz o tio.
Ele próprio já havia feito a travessia da fronteira pelo Rio Grande, anos antes de seu sobrinho morrer no mesmo lugar.
"[Na minha região, no interior do Brasil] você sempre conhece alguém que traz [brasileiros ilegalmente para os Estados Unidos]. Mas eu não tinha ideia do que era [a viagem]. A gente só vê o perigo quando já está na estrada", diz ele, que segue como imigrante indocumentado.
Ele e outros com quem a BBC News Brasil conversou contam que os grupos que organizam as travessias clandestinas são compostos por diversas pessoas e, em geral, o migrante só conhece uma ponta da cadeia. Silvio embarcou no Brasil em um avião rumo ao México. Lá, foi recebido por um agente local, que depois o encaminhou a outro e assim foi até chegarem no deserto.
A travessia pelo rio durou cerca de 15 minutos, mas foi aterrorizante para Silvio. No escuro da noite, uma pessoa do seu grupo de cerca de 50 migrantes foi levada pela correnteza e morreu afogada. "Eles [os coiotes] não estão nem aí. Se alguém fica para trás, morre lá e pronto", diz.
O primo de Andrea passou mal no deserto, já do lado americano da fronteira, e foi deixado para trás. Seu corpo foi achado no dia seguinte por oficiais americanos.
Gerson trabalhava num supermercado na pequena cidade de onde vem a família. Perdeu o emprego e começou a se organizar para tentar a vida nos Estados Unidos.
Fez contato com uma pessoa que já havia organizado travessias de conhecidos dele e rumou para o México. Andrea, que já vivia ilegalmente nos Estados Unidos, estava apreensiva durante a viagem do primo. Pediu que ele a avisasse, por telefone, a cada passo que desse.
"Disse pra ele: 'se você sumir, eu tenho que procurar por você. Se você sumir, ninguém vai avisar que você sumiu'", conta ela.
Quando ele chegou a uma cidade fronteiriça do México, num sábado, a procurou, dizendo que os coiotes avaliaram que aquele não seria um bom dia para fazer a travessia, pois havia muitos guardas pelo caminho. Avaliariam a situação no dia seguinte. O domingo passou sem qualquer notícia de Gerson. Andrea achou que ele estivesse em contato com outros parentes ou que não tivesse deixado o México ainda. Apenas na segunda-feira recebeu a ligação da pessoa que havia organizado a viagem, dizendo que Gerson havia sofrido um acidente na travessia e estava morto.
Andrea assinou um documento se responsabilizando pelo envio do corpo ao Brasil. Um conhecido disse a ela que, ao se apresentar às autoridades, poderia chamar atenção para o fato de que era também uma imigrante ilegal. Isso talvez provocasse um processo de deportação, o que não aconteceu.
"Mas eu nem pensei nisso. Nessas horas você não tem muito tempo para pensar. E não tem que pensar, mesmo. O que eu ia fazer, deixar meu primo lá, morto? A mãe dele ficou uma semana sem falar quando soube que ele tinha morrido. Ela tinha que enterrar o filho dela."
Ela mesma também sofreu. "Eu tive que ir ao médico, tomei remédio para dormir por muito tempo. Quando dormia, sonhava com ele".
Enviando corpos de volta ao Brasil
A empresa de Tiago, a Padref, cuida da parte burocrática e prática do envio do corpo ao Brasil. Ela foi aberta depois que o próprio passou por duas perdas - um primo que morreu num acidente de carro e um conhecido que se matou após ser demitido.
Nesses casos, Tiago observou que companhias que faziam esse serviço muitas vezes cobravam preços exorbitantes dos estrangeiros. "Percebi que poderia ter um lucro pequeno e entregar um serviço importante para a comunidade brasileira", diz ele.
A Padref cobra entre 5,5 mil e 10 mil dólares pelo serviço. Outra empresa consultada pela BBC, a G7 Mortuary Shipping, no entanto, cobra entre 4 mil e 8 mil.
Tanto ele quanto pessoas de outras companhias de repatriação de corpos ouvidas pela BBC News Brasil dizem que não é raro encontrar casos em que essas organizações cobram preços exorbitantes de estrangeiros, muitas vezes desesperados e desinformados.
"Imigrante não costuma ter tanto dinheiro guardado, então isso gera ainda mais sofrimento, porque a família não consegue enterrar o parente, às vezes tem que fazer vaquinha, e o trauma aumenta", diz ele. Seu tio, que vive no Brasil, faz parte de um sindicato de funerárias de Goiás, por isso ele já tinha algum conhecimento sobre o ramo.
Assim como o Itamaraty, Tiago também diz que o número de brasileiros mortos na fronteira é maior do que o que indicam os dados oficiais. "Os motivos que levam os parentes a não registrarem essas mortes são vários - falta de conhecimento, a burocracia envolvida, a questão do idioma, o medo dos oficiais de imigração", opina.
As mortes na fronteira são especialmente penosas porque com frequência a família fica sem respostas. "Fazemos a identificação por uma aliança ou uma tatuagem, mas a causa da morte fica faltando", lamenta. Com informações da BBC News Brasil.