Morte de Rubens Paiva completa 54 anos com legado de luta reconhecido
Por Luiz Claudio Ferreira - Repórter da Agência Brasil
A história da prisão e morte do ex-deputado federal Rubens Paiva (1929 - 1971), que ganhou mais uma vez a atenção nacional e estrangeira com o sucesso do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, colocou em primeiro plano os dias de dor e luta da família, particularmente da esposa, Eunice Paiva. No entanto, a repercussão traz oportunidade também de resgatar o legado do homem que, segundo pesquisadores, teve trajetória idealista e corajosa, liderou Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de suposto financiamento ilegal de campanha e defendia reforma agrária.
O filme, lançado no final do ano passado, foi inspirado no livro de mesmo nome escrito pelo jornalista Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro. O ex-parlamentar foi levado da casa dele, no Rio de Janeiro, por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), no feriado de 20 de janeiro de 1971 (dia de São Sebastião), há 54 anos.
No quartel da Força Aérea Brasileira (FAB), ele começou a ser violentado. Depois, foi entregue a militares do Exército nos porões do DOI-CODI, onde também foi torturado e assassinado naquela mesma noite ou nos dias seguintes, segundo o que foi registrado pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014. Eunice Paiva somente obteve o atestado de óbito em fevereiro de 1996.
O atestado foi a primeira grande reparação à família e à memória do homem, nascido em Santos (SP), que era inconformado com as injustiças sociais desde a época de estudante em São Paulo. Para o biógrafo Jason Tércio, que pesquisou a vida de Paiva por três anos e escreveu dois livros sobre o personagem, o caminho dele foi de combatividade.
Os trabalhos de Tércio foram publicados nos primeiros anos da década passada. O primeiro foi “Segredo de Estado: o desaparecimento de Rubens Paiva” (2010) e o seguinte foi uma biografia intitulada “Perfil Parlamentar de Rubens Paiva” (de 2014), que foi entregue para a Câmara dos Deputados.
Conforme o escritor destaca, Paiva participava do movimento estudantil desde o ensino médio. Foi responsável pelo jornal “O São Bento”. Em 1950, ingressou no curso de engenharia civil na Universidade Mackenzie, onde foi eleito presidente do Centro Acadêmico Horácio Lane. Ao final do curso, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e passou a participar do Jornal de Debates, um seminário nacionalista que também existia em São Paulo.
O então militante considerava o veículo importante como contraponto a um momento em que grupos conservadores estavam determinados a conseguir a privatização da Petrobras. “Ele era movido realmente por idealismo. Acreditava mesmo que o Brasil tinha solução e que podia melhorar a situação dos mais pobres“. Ainda que empresário do ramo da engenharia civil e privilegiado financeiramente, ele defendia pautas sociais.
Tanto que Paiva resolveu se candidatar, em 1962, a uma vaga na Câmara dos Deputados depois de seguir o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Eleito, ele assumiu o cargo em fevereiro de 1963. Mesmo tendo um mandato de apenas pouco mais de um ano, o pesquisador avalia que foram meses de trabalho intenso porque foi a primeira instalada em Brasília e durante o governo João Goulart.
“Os parlamentares do bloco de Paiva defendiam reforma agrária, nacionalização de empresas estratégicas, melhorias na educação e na saúde. O Rubens sempre manteve essa coerência política, talvez o maior legado dele”, diz Tércio.
Atuação
Em meio às discussões acaloradas sobre reforma agrária, uma atuação de destaque de Rubens Paiva foi como vice-presidente da CPI instaurada para investigar o financiamento eleitoral suspeito de parlamentares com uso de recursos do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes).
“Ele era o mais veemente e pressionava. Ninguém ainda sabia, mas seria o maior escândalo de corrupção eleitoral da República até então, e com ramificações internacionais”, apontou Jason Tércio. Havia suspeita de envio de recursos ilegais para financiamento de campanhas de candidatos conservadores.
Isso o deixaria com a imagem de inimigo não somente pelos adversários políticos, mas também pelo regime ditatorial que iria se instalar. Outra atuação dele, durante o mandato, que teria irritado os militares, foi a elaboração de um relatório sobre corrupção na construção da ponte Rio-Niterói.
Alvo
A coerência e combatividade deixaram Paiva no alvo de militares depois do golpe de 1964. Ele era tão idealista que, mesmo depois de ter sido cassado (pelo Ato Institucional número 1) e perdido os direitos políticos em 1964, continuou atuando politicamente. Ele se exilou na Europa por não mais do que cinco meses.
Inclusive, para não ser interrogado com uma volta precoce ao Brasil, resolveu voltar para casa de forma inusitada. Comprou uma passagem para Montevidéu (Uruguai) e, em uma escala no Rio de Janeiro, disse para a tripulação que iria comprar cigarros.
Antes de ir para casa, conforme relata o biógrafo, comprou um buquê de rosas para a esposa Eunice, que tinha ido buscar as crianças na escola. Tércio registra que ele se sentou na escada na porta da cozinha e ficou esperando com o buquê nas mãos. Quando Eunice chegou com as crianças, todos ficaram emocionados. “Estou no Brasil e vou ficar no Brasil. Não quero exílio nem clandestinidade”, disse Paiva.
A partir de então, tocava as atividades de engenheiro sem esquecer as causas contra a ditadura. Ao lado do amigo Fernando Gasparian, por exemplo, participou da diretoria paulista do jornal Última Hora, em 1965, de oposição. Rubens Paiva continuou agindo nos bastidores e se expondo.
Apoio
Após o AI-5, em 1968, Paiva buscava apoiar, de alguma forma, grupos como o MR-8 e encaminhar cartas de perseguidos políticos exilados no Chile. “A família nunca soube dessas atividades paralelas do Rubens. Então, ele tinha esse tipo de imprudência e idealismo. Ao mesmo tempo, era uma coragem política muito grande”, avalia. Os pesquisadores entendem que ele continuou sendo monitorado também pelo destaque que teve como deputado.
Havia registros de Paiva em reuniões com sindicalistas, professores e militantes clandestinos. “Ele foi sempre monitorado. Os agentes acompanhavam os passos dele por 24 horas”.
“Ilumina os porões”
Os produtos culturais mais recentes ajudam a iluminar os porões da ditadura militar, segundo avalia o escritor e ex-deputado federal Emiliano José, que foi também preso e torturado por agentes da ditadura na Bahia, em 1970, Ele foi autor de biografias de personagens importantes da luta armada, como Carlos Marighella e Carlos Lamarca, e também de Waldir Pires, este amigo de Rubens Paiva. Pires, inclusive, esteve na casa de Rubens Paiva no dia 20 de manhã.
Ele explica que o ex-parlamentar nunca pegou em armas e sempre viveu em um cenário de privilégios, como um empresário bem-sucedido que recebia pessoas simpáticas à luta em casa. “Ele era um homem a favor das liberdades e da democracia. Ele foi preso porque teria sido solidário com perseguidos”. Para Emiliano José, iluminar os porões é uma maneira de não esquecer para jamais vir a acontecer novamente.
O ex-deputado estadual Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, em 2014, destacou que resgatar a memória de personagens como o ex-parlamentar e de todos os desaparecidos e mortos pela ditadura é papel da sociedade e também dos gestores públicos. “Perante os militares, o Rubens Fava tinha um ‘agravante’. Ele era uma pessoa privilegiada que defendia a reforma agrária. Por isso, considerado um traidor”.
Prisão engasgada na garganta
A história da prisão do ex-deputado federal e engenheiro paulista Rubens Paiva, em 20 de janeiro de 1971, assombra o Brasil desde aquele momento e também depois de o país voltar a ser democrático. Nessa avaliação do biógrafo Jason Tércio, que escreveu dois livros sobre o parlamentar cassado pelo regime de exceção, trata-se de um crime que está “engasgado na garganta do Brasil”.
“Nessas mais de cinco décadas, a história de Rubens Paiva reapareceu do passado para assombrar a consciência brasileira. Desde que desapareceu, houve vários momentos em que o assunto foi destacado”. Ele cita reportagens publicadas na década de 1970 e os pedidos de desarquivamento do caso em 1981, 1986, 1987 e finalmente o reconhecimento, na década de 1990, pelo Estado brasileiro da morte de Paiva.
Para ele, a repercussão nacional e internacional do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, mesmo com o foco na trajetória da viúva, Eunice Paiva, tornou-se uma nova oportunidade de que a sociedade conheça, com novos produtos culturais, a crueldade da ditadura e também compreenda o legado de idealismo e coragem do parlamentar.
Silêncios
Isso ocorreu porque, na avaliação do escritor, o drama dos desaparecidos nunca foi realmente resolvido no Brasil. “Não somente não julgou nenhum torturador, mas também não teve esforços reais na procura dos desaparecidos”. O primeiro principal avanço nessa história, após a Constituição de 1988, foi a lei de 1995 que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de acusação de participação em atividades políticas durante a ditadura.
Para ele, o caso do Rubens foi complicado em vista das inúmeras versões sobre o destino dele. “O caso ficou muito nebuloso porque o governo da época sempre divulgou versões falsas”. Uma delas deu conta de uma suposta fuga que teria ocorrido com a ajuda de colegas Era uma farsa que foi sustentada por militares, por exemplo, desde a primeira investigação, durante o governo de José Sarney, que mandou abrir inquérito policial militar.
Mas diferentes versões se multiplicaram, inclusive sobre o destino do corpo. No entanto, àquela altura, os nomes dos agentes envolvidos no assassinato foram revelados, mas inocentados. A Comissão Nacional da Verdade, em 2014, oficializou os autores dos crimes que vitimaram o ex-parlamentar. Segundo os registros, o tenente do Exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho foi o responsável pelas torturas dentro da cela. Ele já faleceu.
O Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco militares reformados, em 2014: José Antônio Nogueira Belham, Jacy Ochsendorf e Souza, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos. Há 10 anos, a Justiça aceitou a denúncia e os militares tornaram-se réus. Dos cinco, três morreram (Sampaio, Jurandyr e Campos) desde o início do processo que está no Supremo Tribunal Federal.