Futura presidente do Supremo Tribunal Militar (STM), Maria Elizabeth Rocha diz que julgamento de militares que assassinaram Evaldo Rosa e Luciano Macedo, no Rio de Janeiro, a deixou “extremamente abalada”
A ministra considerou "lamentável" a decisão da Corte, de reduzir as penas dos oito militares do Exército acusados pelos assassinatos do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, na semana passada. Os militares dispararam 257 vezes, sendo que 62 tiros acertaram o carro que estava Evaldo e a família. Eles estavam indo para um chá de bebê no bairro de Guadalupe, na zona norte do Rio. Macedo foi morto ao tentar ajudar aquelas pessoas que ele via sendo alvejadas.
“Não tem nada pior do que temer o Estado. O Estado pode ser um inimigo invisível que você não tem como combater. A prova disso está em Guadalupe”, disse a ministra. Maria Elizabeth Rocha teve o voto mais duro contra os autores, pedindo uma pena de 31 anos e 6 meses de reclusão para o tenente e de 28 anos de reclusão para o sargento, além de 23 anos e 4 meses para os cabos e soldados envolvidos.
No entanto, o relator da matéria, o ministro e tenente-brigadeiro da reserva da Aeronáutica Carlos Augusto Amaral atendeu à tese da defesa e considerou que o tiro que atingiu Evaldo teria ocorrido durante a troca de tiros entre a patrulha do Exército e os homens que realizavam um assalto na região.
Além disso, a respeito da morte do catador, o magistrado votou para mudar a classificação de homicídio doloso para culposo (quando não há intenção de matar). Ao final, venceu a tese no STM, segundo a qual, os militares agiram em legítima defesa. Por isso, a pena de três anos, sete meses e seis dias de detenção para o tenente e três anos de detenção para os demais, todos em regime aberto, gerou forte repercussão no país e internacionalmente.
A ministra considerou toda a situação dolorosa e fruto do racismo estrutural, inclusive porque os militares que dispararam contra os inocentes também são negros. “Não é admissível que o Estado se comporte dessa forma. Eles foram sujeitos a um perfilamento racial”, afirma. Ela, que vai assumir a presidência da Corte em março de 2025, diz ser necessário publicizar mais as ações da Justiça Militar, questionada nos últimos dias.
Além do caso Guadalupe, a ministra defendeu, em entrevista por telefone à
Agência Brasil, a submissão dos militares ao poder civil e citou a criação do Ministério da Defesa como consequência disso. “Os homens que são armados e investidos no monopólio da força legítima pelo Estado têm que se submeter ao poder civil e se subordinar às regras civis e militares que os enquadram”. Para ela, “quando a política adentra os quartéis, a hierarquia e a disciplina saem arranhadas".
Maria Elizabeth Rocha aborda ainda o tema dos militares acusados de tentativa de golpe de Estado, defende mais conteúdos sobre democracias nas academias militares e na educação civil e diz que priorizará a abertura do STM para a sociedade, incluindo a criação de uma assessoria para minorias. Confira a entrevista abaixo.
: A decisão do STM no caso Guadalupe teve repercussão internacional associando o Brasil à impunidade. A senhora havia pedido vista e depois foi voto vencido por uma condenação com pena maior para os acusados. Qual é a sua avaliação sobre esse assunto, cuja repercussão foi tão grande?
Ministra Maria Elizabeth Rocha: Na verdade, foi lamentável tudo o que aconteceu. Eu fiquei extremamente abalada. Talvez tenha sido o pior processo que eu julguei nesses 18 anos de magistratura. E houve muita divergência dentro da Corte. Na verdade, o meu voto foi o mais duro, mas teve ministro que condenou há 10 anos. Não foi uma liberalidade geral como em princípio pareceu. Mas realmente prevaleceu o voto do ministro relator e revisor, numa pena de três anos e pouco, em regime aberto.
O que eu posso dizer é que uma família perdeu o pai, o sangue espirrou na blusa do filho e tudo isso, para mim, foi um elemento de convencimento para realmente ser dura na pena. Aqueles militares que atuaram em Guadalupe descumpriram todas as regras de engajamento previstas. E nem se tratava de uma operação de Garantia da Lei de da Ordem (GLO), que já tinha, inclusive, findado no ano anterior.
O Estado do Rio de Janeiro já não estava mais sob intervenção federal. Eles estavam levando quentinhas e comida para os soldados que faziam a guarda e a vigilância dos próprios nacionais residenciais da família militar naquela região. Eu até reconheço que realmente o Brasil está adoecido e teme bastante a criminalidade urbana, mas o Estado não pode reagir dessa maneira.
Mesmo que se tratasse de criminosos, de bandidos, como eles os qualificaram, eram um pai de família e um catador de recicláveis. Não se poderia desfechar mais de 250 tiros contra homens que estavam desarmados. E mesmo que estivessem armados, que não era o caso, essa desproporção foi inimaginável em um Estado Democrático de Direito.
Por tudo isso, a lição que eu quis deixar assentada no meu voto é que não é admissível que o Estado se comporte dessa forma. Eles foram sujeitos a um perfilamento racial, a um estereótipo de inimigo, de um racismo estrutural que, infelizmente, o Brasil ainda possui. O mais irônico é que faziam parte da tropa, que fuzilou o músico e o catador de recicláveis, homens pretos e pardos. Esses homens acreditam nesse sistema de exclusão social que o racismo estrutural, que também é estruturante, impõe a eles. Isso é o mais doloroso de tudo.
Agência Brasil: A senhora viu a extensão da repercussão da decisão do STM. Há questionamentos nacionais e internacionais sobre a existência de uma justiça militar no Brasil, inclusive de ser uma corte corporativista. Como a senhora, que será presidente do STM a partir de março do ano que vem, viu isso?
Ministra Maria Elizabeth:A primeira atitude que eu procurarei tomar na minha presidência é abrir a Justiça Militar para a sociedade. Os operadores do direito, inclusive os juízes de direito, não conhecem a Justiça Militar. Eu atribuo essa responsabilidade a nós mesmos. Nós queremos nos tornar conhecidos.
Se nós queremos mostrar a nossa importância para a República, somos nós que temos que fazer uma autopropaganda. Essa é a verdade. Nós temos que mostrar que é a justiça que garante a hierarquia e a disciplina dentro dos quartéis, e julgam em tempo célere.
É preciso ter uma justiça judicial. Não uma corte marcial. É exemplo do que acontece nos Estados Unidos e em quase todos os países latino-americanos que têm justiça militar. O único modelo semelhante ao nosso é o da Espanha. É uma justiça penal especializada, como a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral. Estamos na Constituição desde a Carta de 1946, que é uma carta democrática, fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte.
A lição que eu quis deixar assentada no meu voto é que não é admissível que o Estado se comporte dessa forma. Eles foram sujeitos a um perfilamento racial, a um estereótipo de inimigo, de um racismo estrutural que, infelizmente, o Brasil ainda possui.