A TV Brasil já exibiu três temporadas do programa e recebeu mais 200 convidados nacionais e estrangeiros. As duas primeiras temporadas foram apresentadas pelo escritor Raphael Montes. A terceira, pela jornalista da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) Katy Navarro. Eliana assume a quarta temporada. Uma das novidades é o quadro de indicações de leitura que será feito por booktubers, ou seja, produtores de vídeos com conteúdo literário na internet.
“A expectativa para esta temporada é que o Trilha de Letras continue abrindo os caminhos da literatura para os espectadores da TV Brasil. Acreditamos que a função da TV pública é estimular a cultura, o pensamento e formar leitores”, diz Emília Ferraz. A diretora antecipa que Eliana Alves Cruz trará “conversas informais e íntimas com os entrevistados, para o deleite dos espectadores”.
A jornalista diz estar gostando da experiência: “Está sendo muito lindo ouvir as pessoas, ver o que elas têm para dizer, conhecer o processo delas. A gente aprende, é um acréscimo de energia, de energia vital. Quem está ganhando sou eu.”
A apresentadora conversou com a Agência Brasil após a gravação de um dos episódios do Trilha de Letras. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: O que podemos esperar da nova temporada do Trilha de Letras e como está sendo assumir a apresentação do programa?
Eliane Alves Cruz: O Trilha de Letras é um programa que eu acompanhava antes de ter sido interrompido. Eu mesma já fui entrevistada por ele. É um programa que é muito necessário porque ele é único. É o único programa da TV aberta sobre literatura. Ele é realmente necessário. Nesta temporada, a ideia é trazer a maior diversidade possível de autores e de pessoas do universo do livro, não necessariamente sejam autores, mas editores, críticos. À medida que o programa for caminhando, a gente quer fazer um painel do que é literatura brasileira contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo. Eu estou realmente muito feliz de fazer parte da história do Trilha de Letras e estar apresentando o programa em um momento tão especial e histórico do Brasil, de retomada de tantas coisas.
Agência Brasil: Agora você faz parte da TV Brasil. Como é estar nesse espaço da comunicação pública?
Eliane Alves Cruz: Eu, como escritora, sou fruto de uma política pública de cultura. Eu ganhei o concurso da Fundação Cultural Palmares em 2015 e foi graças a esse concurso que hoje sou escritora. Então, eu acho que é uma forma de retribuir o tanto que uma política publica pode fazer por alguém. Eu acho que me descobriu como autora e descobriu muitos talentos em outras áreas. Mas não é a única coisa que a esfera pública pode fazer pelo cidadão, pela cidadã brasileira. Eu acho que é uma obrigação do Estado, sim, fomentar, incentivar, divulgar, porque isso traz vida. Isso é na verdade a nossa impressão digital. A cultura é a impressão digital de um povo, é o que nos coloca no mundo como povo brasileiro.
Agência Brasil: Eliana, você é jornalista de formação, com uma grande atuação na área. Como você entra na literatura e quando o lado de escritora começa a ganhar espaço?
Eliane Alves Cruz: Eu acho que a literatura sempre esteve na minha vida. A minha mãe era professora do ensino fundamental e ela me alfabetizou e muito lendo os livros para mim e comigo. Então eu acho que desde aí é o começo da paixão pelos livros. Meu pai sempre gostou muito de ler e incentivou que a gente cultivasse esse hábito. Eu acho que a literatura sempre fez parte da minha vida, mas eu não me enxergava como produtora de literatura, como alguém que estivesse ali por trás da caneta, como escritora. Isso aconteceu para mim em um momento de necessidade, de me entender como ser humano, de me entender como mulher negra nessa sociedade tão complicada e tão violenta conosco. Eu vi que eu tinha uma história dentro da minha casa que não existia nos nossos livros. Eu resolvi escrever essa história, por que não? Essa pergunta do “por que não?” a gente tem que fazer um dia na vida. Desde 2010, eu comecei a pesquisar sobre a minha própria história e a ficcionalizei no livro Água de Barrela. Com esse livro, que terminei em 2015, ganhei o concurso da Fundação Palmares e aí comecei realmente, de fato, minha carreira de escritora. Mas, eu tenho um texto que publiquei no ano passado, um texto infantil, que existe desde os meus 18 anos. É isso, a gente não é escritor, não se faz assim do dia para a noite. Na verdade, é a coroação de uma vida, de uma trajetória e de uma história.
Agência Brasil: Uma das coisas que o Trilha de Letras traz é o bastidor da escrita. Como é o seu bastidor? Como é o seu processo de criação, esse passo a passo até chegar a um livro pronto?
Eliane Alves Cruz: Cada livro é um processo diferente, então, eu tenho vários processos diferentes. Esses livros históricos demandam muita pesquisa porque tratam de realidades nas quais a gente não está mais inserida. O mundo andou, a história andou, é preciso voltar para o banco escolar e estudar um pouco. Eu estudei muito. Pesquisei o século 19, estudei uma série de coisas para poder criar a ambientação dessas histórias que são Água de Barrela, O Crime do Cais do Valongo e Nada Digo de Ti que em Ti não Veja. São histórias que se passam em séculos passados. Solitária é um livro contemporâneo, bem contemporâneo, e aí traz outra dificuldade porque a gente está inserido ali dentro daquela temática e não tem o distanciamento para olhar para aquilo. Mas também é outro desafio interessante, escrever no olho do furacão. Foi muito intenso. Muito intenso mesmo. Cada livro é um processo diferente. Eu sou uma pessoa que gosta de escrever com música, a música me inspira, eu organizo as informações. Eu procuro personagens da vida real que se pareçam com meus personagens da ficção, para eu observar como andam, como falam, o que dizem. Por exemplo, para escrever o Água de Barrela, eu li os autores do século 19, para ver um pouco da língua. Não que eu vá exatamente usar o português da época. Às vezes você traz uma palavra que era dita e que não está no nosso usual, e isso já leva o leitor para outro século. O fato de eu usar vosmecê já leva a pessoa para outro lugar, outro tempo, outro lugar do tempo. Para mim, isso tudo é muito fascinante. Eu gosto de ler, gosto de pesquisar e cada vez eu sinto que vou refinando esse processo.
Agência Brasil: Quais são suas referências?
Eliane Alves Cruz: Ih, tanta gente. É uma pergunta muito difícil. Esses autores todos de séculos passados como Machado de Assis e Lima Barreto. Tanta gente que nos formou. Maria Firmina dos Reis, embora a gente a tenha descoberto como essa primeira autora [negra brasileira] apenas mais tarde. A gente não lê Maria Firmina nos bancos escolares, mas é uma autora muito interessante porque ela fala de um lugar e é muito corajosa. Tenho hoje muitas autoras negras que me inspiram, tanto no Brasil como fora: Conceição Evaristo, Miriam Alves, Geni Guimarães, e minhas contemporâneas, como Ana Maria Gonçalves. De fora, Teresa Cárdenas, que é uma autora cubana que eu gosto muito, Toni Morrison, Alice Walker, bell hooks, são referências. É um montão de gente. É até complicado a gente dar nome. Sabe que eu gosto de ler contos russos? Esses caras, esses contistas todos, eles fazem do nada, de alguma coisa absolutamente banal, uma história genial. Eu acho que é muito bacana a gente aprender essa técnica, essa forma de falar sobre o aparentemente banal, isso me atrai. Os meus personagens, na maioria dos meus livros, todos são pessoas comuns que estão fazendo a história e são testemunhas da história.
Agência Brasil: Eu pude acompanhar a gravação de um dos episódios e foi muito interessante observar alguém que entende muito de literatura e que está inserida nesse universo fazendo perguntas a outros autores. Conta um pouquinho dos bastidores para nós, como é esse preparo?
Eliane Alves Cruz: A equipe é maravilhosa. A equipe faz um roteiro ótimo e eu contribuo com o que eu sei do autor. É um diálogo interessante porque a gente faz as perguntas e tem vontade de responder. É muito interessante isso. Mas é também um exercício. O exercício da escuta é muito necessário. A gente tem muita tendência de querer falar o tempo todo, então, está sendo muito lindo ouvir as pessoas, ver o que elas têm para dizer, conhecer o processo delas. A gente aprende, é um acréscimo de energia, de energia vital. Quem está ganhando sou eu.