Povos tradicionais resistem à expansão da agricultura no Cerrado
Por Agência Brasil
Os povos tradicionais do Cerrado são formados por comunidades herdeiras dos “saberes ancestrais e tradicionais que guiam, há inúmeras gerações, o manejo das matas e paisagens, que fazem dessa rica savana uma das regiões mais biodiversas do mundo”. O conceito foi elaborado pelos organizadores do livro Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade.
São esses povos que enfrentam, diariamente, os danos mais imediatos do desmatamento e da redução da vazão dos rios que têm afetado a savana brasileira.
Os povos do Cerrado são formados por indígenas do tronco Jê (Xerente, Xakriabá e Xavante), do tronco Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá), por quilombolas (como os kalungas, jalapoeiros e os mesquitas) e comunidades tradicionais como as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, além de pescadoras artesanais, pantaneiras, entre outras populações de base camponesa.
No sudoeste do Piauí, uma das áreas mais recentes da expansão da fronteira agrícola no Cerrado, as 78 famílias indígenas da etnia Akroá-Gamela que vivem no território Laranjeiras têm denunciado o avanço da soja sobre terras que consideram originariamente como sendo do povo Akró-Gamela.
O indígena José Wylk lidera a Associação dos Povos Indígenas de Laranjeiras, no Piauí - Arquivo pessoal
“Os conflitos por terra têm aumentado com ameaças por parte do agronegócio, invasões, intimidações e violações de direitos humanos”, denunciou José Wylk Brauna da Silva, de 30 anos. A liderança da Associação dos Povos Indígenas de Laranjeiras diz que eles têm lutado pela demarcação do território.
“Quando eu era criança, nosso povo vivia em harmonia. A gente tinha espaço para viver, plantar, colher e beber”, destacou José Wylk.
“Nos últimos anos, há uma drástica mudança. O desmatamento e o uso excessivo de agrotóxicos contaminam a água e influenciam no clima”.
Wylk acrescentou que, apesar das denúncias feitas ao Poder Público, as respostas são insuficientes. “A gente exige que o Estado vire de frente para a gente e passe a atuar também para expandir as políticas públicas na região”, concluiu.
A luta do povo Akró-Gamela no Piauí é semelhante à do povo do Quilombo de Mesquita, no município de Cidade Ocidental (GO), na região do entorno do Distrito Federal (DF).
A comunidade, já reconhecida como quilombo pela Fundação Cultural Palmares, tem cerca de três mil pessoas, com mais de 250 anos de existência, e tenta conseguir a titulação de 4,2 mil hectares.
Em entrevista recente à TV Brasil, a liderança José Roberto Teixeira Braga denunciou o avanço do desmatamento no quilombo, principalmente por fazendeiros de soja. “Tem muito invasor desmatando e nós não gosta que desmatem. Os bichos estão tudo desesperado entrando na casa do povo porque estão acabando com o Cerrado tudo”, contou Braga, que acrescentou que tem recebido ameaças de morte.
Correntina
O município de Correntina (BA), no extremo oeste baiano, virou notícia internacional em 2017, quando milhares foram às ruas denunciar o uso excessivo da água pelas fazendas, que estariam reduzindo a vazão dos rios usados pelas comunidades tradicionais.
Carreirinha luta contra o uso excessivo da água por grandes agricultores em Correntina, na Bahia- Arquivo pessoal
O líder da Associação Comunitária dos Pequenos Criadores do Fecho de Gado Bravo, Jamilton Santos de Magalhães, conhecido como Carreirinha, avaliou que o protesto não teve muito efeito e que as outorgas para o uso da água continuaram.
“O Estado se posicionou, a meu ver, conivente com o que aconteceu e está acontecendo agora, liberando as outorgas novamente. Continua com a mesma prática”, denunciou o agricultor que vive em uma comunidade há cerca de 20 quilômetros (km) do centro do município. Na comunidade, cria-se gado e planta-se feijão, milho, mandioca, entre outras culturas.
Carreirinha destacou que o pai dele já lutava pela terra contra a expansão do agronegócio na região e que ele continua essa luta: “muitos perderam os territórios, mas a gente continua resistindo”, afirmou.
“Não é só pela terra que lutamos, é pela água e pelo Cerrado porque nessas áreas que a gente luta para defender o território são as únicas áreas que restam de Cerrado em pé e, por sinal, são as únicas que ainda têm nascentes vivas”, explicou.
Comunidades dissolvidas
O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) atua apoiando os povos do Cerrado que enfrentam a expansão da agropecuária sobre os seus territórios tradicionais há pelo menos 30 anos. A coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do ISPN Izabel Azevedo afirmou que a expansão do agronegócio se dá de forma irregular, sem respeitar as terras dos povos tradicionais.
“Existe um modus operandi do agronegócio de lançar mãos de fraudes no sistema cartorial que acabam por ocupar territórios de povos tradicionais”, destacou.
“É um processo institucionalizado com pouquíssimo controle do Estado e que lança mão de muita violência por meio da presença das milícias rurais. As milícias passam a ocupar as comunidades e a comprar casas no meio da comunidade. Isso vai gerando uma sensação de insegurança e medo e algumas comunidades acabam se dissolvendo” relatou Izabel.
MMA
Marina Silva na Comissão do Meio Ambiente do Senado - Lula Marques/ Agência Brasil
Em audiência pública no Senado no final de agosto, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva informou que a pasta está preparando um novo plano contra o desmatamento do Cerrado que deve ser colocado em consulta público neste mês de setembro. Ao mesmo tempo, Marina destacou que o plano não terá sucesso sem participação dos estados.
“Considerando que mais de 70% dos desmatamentos que estão acontecendo no Cerrado têm a licença para desmatar, o que nós vamos precisar é, digamos, revisitar essas licenças para saber o nível de legalidade delas”, afirmou a ministra.
Nossa reportagem procurou a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), representantes do agronegócio, para comentar o desmatamento do bioma, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.