A história de um navio escravista afundado pelo seu próprio comandante em Angra dos Reis, no litoral fluminense, vem sendo contada e recontada há várias gerações no Quilombo Santa Rita do Bracuí.
“Não foi um acidente, foi uma chacina”, afirma a liderança quilombola Luciana Adriano da Silva, já que muitos dos africanos transportados forçadamente teriam sido abandonados para morrer no mar. Encontrar a embarcação e “fazer esta denúncia para o mundo é uma das formas de reparação por tudo o que os nossos antepassados sofreram,” completa.
Passados 170 anos do naufrágio, arqueólogos mergulham na Baía da Ilha Grande para buscar o brigue Camargo, envolvido num dos episódios mais emblemáticos do período em que o tráfico transatlântico de africanos escravizados já havia sido proibido no Brasil, mas continuava a ocorrer de forma clandestina debaixo das vistas grossas das autoridades. Segundo o arqueólogo Luís Felipe Santos, presidente do Instituto AfrOrigens, existem diversos achados, alguns compatíveis com o período estudado. Mas ainda serão feitas análises antes da conclusão da pesquisa.
Em dezembro de 1852, o capitão norte-americano Nathaniel Gordon trouxe 500 moçambicanos para serem escravizados nas fazendas de café do Vale do Paraíba. Perseguido pela patrulha naval, afundou o barco e fugiu disfarçado de mulher. Dez anos mais tarde, depois de ser pego no comando de outra embarcação escravista, Gordon foi a primeira e única pessoa a ser julgada e enforcada pelo crime de tráfico de africanos nos Estados Unidos, diz o documentarista Yuri Sanada, diretor da produtora Aventuras Produções e roteirista de um filme a ser produzido sobre o malfadado capitão.
Aqui no Brasil, a polícia entrou nas fazendas para apreender os africanos recém-chegados e investigou os fazendeiros envolvidos na organização criminosa. Era a primeira vez que o império brasileiro tomava uma atitude em relação ao tráfico ilegal, afirma Martha Abreu, professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. “Chegaram outros navios? Podem ter chegado, mas realmente a partir do Camargo foi um sinal, olha, não dá mais.”
Um dos envolvidos no escândalo era o comendador José de Souza Breves, proprietário do antigo engenho Santa Rita do Bracuí, atual território do quilombo. Segundo a griô e coordenadora da Associação de Remanescentes do Quilombo Santa Rita do Bracuí (ARQUISABRA), Marilda de Souza Francisco, a propriedade era na verdade uma fachada para o tráfico. Uma estrada que passava por dentro da fazenda levava os africanos aos cafezais da cidade de Bananal, no interior de São Paulo.
Depois de mais de um século de resistência e batalha por reconhecimento, o quilombo está prestes a receber o título das terras pelo Incra e espera que a história do brigue Camargo não seja esquecida. Uma das ideias em discussão é que o local do naufrágio se torne um ponto de visitação turística em benefício da comunidade.
As buscas são financiadas pelo Slave Wrecks Project, da rede americana de museus Smithsonian, que rastreia naufrágios no Oceano Atlântico. Nos últimos anos, navios escravistas já foram encontrados nos Estados Unidos e Moçambique. “A proposta do projeto é fazer com que este passado seja útil no presente”, diz Stephen Lubkemann, co-diretor do Slave Wrecks Project.
Se os pesquisadores de fato encontrarem o brigue Camargo, será um feito inédito. “O apagamento histórico é muito forte. A nossa pesquisa é a primeira de um navio escravagista no Brasil, depois de tantos e tantos anos,” afirma o arqueólogo Julio Cesar Marins.
O programa vai ao ar neste domingo (06) às 22h, na
TV Brasil.