“Eu não trabalhava, eu não estudava e ficava só em casa, abandonei os estudos porque arranjei um trabalho, depois fiquei sem os estudos e sem o trabalho”. Mas o projeto transformou a vida dele. “Consegui ingressar no Ceja para concluir os estudos, tive direito a vários cursos e à ajuda de custo, que dava para ajudar em casa. Foi uma experiência muito boa, os professores são ótimos!”
Mateus foi efetivado no banco depois de um ano e meio como jovem aprendiz e ainda cursa duas faculdades ao mesmo tempo. “Estou no segundo semestre da faculdade de administração e de processos gerenciais também.”
Aos 22 anos, ele também quer fazer concurso público. “Meu sonho é terminar as duas faculdades, conseguir um bom emprego e ainda pretendo passar em concurso público e vou passar!”.
Nayane e Carlos estão no projeto Virando o Jogo, que em Fortaleza e em Sobral chegou a 5.180 jovens cearenses que não estudam e nem trabalham, ou, como o jovem Mateus, não estudavam e não trabalhavam e tiveram a vida transformada. A iniciativa do governo do estado do Ceará envolve órgãos das áreas de educação, da segurança pública, a Fundação de Amparo à Pesquisa, além do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).
A história desses e de outros jovens foi registrada no livro-reportagem Aqui Contém Sonhos: Narrativas em torno do Projeto Virando o Jogo.
O projeto possibilita acesso gratuito a cursos profissionalizantes certificados pelo Senac e, paralelamente, promove ações de reinserção escolar junto a quem interrompeu os estudos e tem interesse em voltar a estudar, reconduzindo cada jovem participante evadido ao ensino regular.
Ao vestir a camisa do Virando o Jogo, o "botão" da virada é acionado em diferentes fases: ao longo do processo formativo, participantes do projeto Virando o Jogo passam por formação cidadã, qualificação profissional, ações comunitárias e atividades socioculturais, além de adquirir noções de empreendedorismo e gestão financeira. Contam ainda com atendimento psicossocial e acompanhamento familiar, quando necessário, assim como ajuda de custo, vale-transporte, material didático, uniforme, lanche e outros benefícios sociais.
Quem avançou em todas as “casas” do projeto Virando o Jogo sai com certificado técnico-profissional assinado pelo Senac, perspectiva de encaminhamento para estágios ou empregos, pequenos negócios iniciados ou em planejamento e um currículo mais encorpado, o que resulta em chances mais sólidas para ingressar no mercado de trabalho.
Com recursos do Programa de Prevenção e Redução à Violência do Estado do Ceará (PReVio), o governo do estado afirma que em 2023 o projeto vai chegar a três municípios cearenses: Caucaia, Maracanaú e Maranguape. Em 2024, serão ainda acrescidos Itapipoca, Quixadá, Iguatu, Crato e Juazeiro do Norte. Com isso, a estimativa é atingir a marca de 20 mil adolescentes e jovens atendidos em todo o estado.
Avaliação
A iniciativa do projeto Virando o Jogo levou a um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Fortaleza (Unifor) a analisá-lo, assim como a situação do jovem que está fora da escola e do trabalho. Na visão do pesquisador Gustavo Raposo, primeiro é preciso pensar o sentido do termo nem-nem.
“Nem estuda, nem trabalha, essa ideia é de que esse jovem está numa situação muito vulnerável, porque ele deveria estar estudando e não está. Ao não estudar prejudica o futuro profissional dele, o futuro da renda e também não estar trabalhando faz com que ele fique ainda mais vulnerável, exposto ao recrutamento para atividades ilícitas e isso acaba se transformando num duplo efeito de risco. E tem um contingente muito grande de jovens que estão nessa situação”, lamenta o pesquisador, que trabalha com direitos humanos e pesquisa empírica.
O pesquisador explica que é preciso analisar o que faz esse jovem estar fora da escola. “Tem muitas questões relacionadas à violência urbana, deslocamento, efeito do controle das organizações criminosas sobre os territórios, uma infinidade de possibilidades e aspectos que podem ser tratados pra pensar por que esse jovem não está dentro da escola.”
O ambiente escolar também influencia para este abandono. “Outro aspecto importante diz respeito à própria escola: por que não consegue manter esse jovem dentro da escola? Será que a escola é ruim, será que tem violência dentro dessa escola, será que ela não está oferecendo uma formação adequada para esse jovem, que faça com que ele se sinta estimulado e atraído para ficar dentro da escola? A dinâmica também relacionada à escola que tem que ser observada.”
Quanto à dimensão profissional, o pesquisador frisa que o jovem pode ocasionalmente trabalhar, embora precariamente. “Ele está fazendo bicos, se movimentando, às vezes transitando entre atividades lícitas, como entrega, e ilícitas, fazendo pequenos trabalhos associados ao mundo crime, tem uma situação que esse jovem que a gente diz que não trabalha, na verdade ele está se virando de todo jeito para sobreviver, mesmo que não tenha uma atividade fixa permanente.”
Para Raposo, é preciso refletir que esse jovem é supervulnerável em todos os aspectos. “Essa situação destrói boa parte das perspectivas de futuro que ele tem e cria uma situação de vulnerabilidade que pode gerar riscos associados, inclusive à segurança e a atividades criminosas.” O pesquisador defende que esse jovem precisa ser cuidado.
“Precisa ser protegido, precisa haver investimentos, programas, que tragam esse jovem de volta para escola e, ao mesmo tempo, trabalhe a inserção ou a reinserção profissional dele. O nem-nem tem que ser acolhido porque ele é um jovem que tem potencial enorme, eles são criativos, têm projetos, sonhos, ideias inovadoras, mas estão, em grande medida, sem a capacidade de enxergar naquele horizonte que ele vive, ver o que ele pode fazer para sair daquilo.”
Para tanto, os projetos podem mudar a situação, analisa Raposo. “Os projetos mostram opções, caminhos, abrem uma porta, induzem esse movimento inercial que acaba fazendo com ele seja tragado por essa situação de vulnerabilidade em que vive.”
O pesquisador alerta, no entanto, para a visão negativa que há desses jovens. “É preciso muito cuidado com a ideia do jovem problema. Tem muita gente que fala: 'Vamos investir para que eles não virem 'ladrões'. Cuidado com essa abordagem. A abordagem do acolhimento, do apoio, da compreensão dos problemas que vivem, da oportunidade e da potencialidade que esse jovem tem, se for bem trabalhada, é adequada, é a perspectiva que a gente prefere atuar.”
Ele observa que falta de perspectiva dos jovens também não é um problema só brasileiro. “É é muito presente em outros países, essa falta de oportunidades, de perspectivas, o mercado de trabalho que não consegue absorver esses jovens, especialmente jovens negros, que vêm de grupos minoritários no exterior, principalmente afetando filhos de imigrantes, então não é um problema só brasileiro. Mas no Brasil é um problema de dimensão alarmante.”