Bienal: autores LGBTQIA+ conquistam visibilidade e comemoram audiência
O primeiro livro de Juan Jullian (foto), Meu Querido Ex, só existia em versão digital na Bienal do Livro de 2019. O jovem escritor carioca, de 24 anos na época, tinha se autopublicado na Amazon e investido em marcadores de livros e broches de divulgação para ir em busca de leitores em todos os dias do evento. “Eu ia na fila de outros autores, hoje amigos meus, e falava: ‘você gosta do livro dele? Então, provavelmente você vai gostar do meu’.”
Os esforços dele e os de outros autores LGBTQIA+ para divulgar seus trabalhos naquele ano, porém, foram alvo de um ataque que partiu da própria prefeitura do Rio de Janeiro. O prefeito Marcelo Crivella determinou o recolhimento de livros com personagens LGBTQIA+, por considerar que uma história em quadrinhos de super-heróis (Os Vingadores, a Cruzada das Crianças), era imprópria, por retratar um beijo entre dois adolescentes do sexo masculino. "Livros assim precisam estar embalados em plástico preto e lacrado, informando o conteúdo”, disse na época o prefeito, por meio de nota oficial.
Fiscais da Secretaria Especial de Ordem Pública (Seop) chegaram a ir ao Riocentro para fazer a apreensão dos livros, mas a reação à censura fez com que todos os mais de 20 mil exemplares da HQ se esgotassem em menos de 40 minutos após a abertura da bienal. A organização da feira literária recorreu à Justiça, mas o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desembargador Claudio de Mello Tavares, decidiu a favor da prefeitura. Coube ao Supremo Tribunal Federal, a pedido da Procuradoria-Geral da República, a decisão de garantir a liberdade para a feira literária, em decisão liminar que saiu apenas no dia do encerramento do evento.
Apesar de violenta, a tentativa de silenciar histórias com pessoas LGBTQIA+ em 2019 teve um efeito reverso naquele ano e nos anos seguintes. Segundo a organização do evento, a Bienal do Livro de 2019 vendeu o triplo de exemplares de obras como a HQ censurada, com personagens LGBTQIA+. Para Juan, que distribuía os broches para divulgar seu livro, a surpresa foi uma onda de leitores que o transformou em um autor best-seller. Em um único dia, foram mais de 10 mil downloads.
“Foi uma combinação dos esforços que eu vinha fazendo para a divulgação com esse momento de boom que a gente não tinha como esperar. Meu Querido Ex fez parte daquele momento. Foi um dos mais baixados naquela época e chegou a pegar o primeiro lugar no ranking geral na Amazon”, lembra o autor, que, só então, chamou a atenção de grandes editoras e passou a ser publicado pela Galera Record.
“Por conta da violência e daquele episódio extremamente homotransfóbico, meu livro chegou a espaços a que ele não teria chegado.”
Protagonistas LGBTQIA+
Juan Jullian foi autor convidado da Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2021, e volta ao evento de 2023 para divulgar sua terceira obra, Viralizou, recheada de referências à cultura pop e a tretas da internet. No enredo, uma funkeira e um jornalista de celebridades que destruiu a carreira dela se unem para sobreviver em meio a um apocalipse zumbi - ele não esconde que a inspiração foi a briga entre a cantora Anitta e o colunista Léo Dias. Assim como em seus dois livros anteriores, o protagonismo da história é de pessoas LGBTQIA+, e a proposta do autor é construir com a literatura um lugar de liberdade e celebração para a diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero.
“Voltar a esse espaço [Bienal do Livro] em um lugar de protagonismo e podendo celebrar as nossas narrativas é sempre simbólico. Houve uma mudança absurda entre o perfil das mesas e autores convidados da bienal antes de 2019 e nessas duas últimas edições. O evento está ficando mais diverso, refletindo mais a pluralidade da audiência, e é bem feliz fazer parte disso”, diz o escritor.
Na bienal de 2023, marcada para o período de 1º a 10 de setembro, o escritor vai participar da mesa Mundos Paralelos, em 2 de setembro, que vai retratar como a diversidade na literatura jovem adulta vai além de falar de romance homoafetivo, e pode trazer o protagonismo LGBTQIA+ em outros gêneros, como a fantasia, a ficção científica e o terror. O público que Juan Jullian tem em mente quando escreve seus livros se parece com ele: jovem, não branco e LGBTQIA+, mas ele acredita que a literatura tem a capacidade de gerar empatia e mostrar que afetos, sofrimentos e outras questões da vida são universais.
“Antes, nos eventos, eu sempre me chocava com uma quantidade enorme de mulheres com entre 30 e 40 anos no público. Mas eu pensei: que tolo eu estou sendo. Apesar de ser a história de um menino gay e negro que quer superar um ex-namorado, é uma história sobre um coração partido. E todo mundo, independentemente de orientação sexual, sabe como é sofrer por um coração partido”, afirma. “Eu acho que a literatura tem um papel fundamental de gerar empatia. É mais fácil se emocionar com uma realidade que não é a sua ou temas que não fazem parte do seu dia a dia quando você vê em uma história do que quando você lê um artigo sobre aquilo. Você se coloca nos sapatos do personagem.”
Corpos diversos
A distopia também está no enredo de Corpos Secos, de Natalia Borges Polesso. A autora lésbica e não binária venceu o prêmio Jabuti de 2021, na categoria Romance de Entretenimento, ao retratar personagens diversos que tentam sobreviver em um Brasil pós-apocalíptico.
“Geralmente, a gente vê um fim do mundo muito hétero, com machões que vão entrar numa espaçonave e evitar um cataclisma. E eu não quero isso, eu quero pensar nas coletividades, compostas também por pessoas que são marginalizadas, pensando sua identidade de gênero e em como isso afeta o nosso viver”, define a autora, que defende uma diversidade de corpos ainda mais rica, com personagens com doenças crônicas e deficiências.
“Romances com pessoas com epilepsia, pessoas com diabetes, e outros corpos que não sejam tão normativos. A gente vive com tantos atravessamentos, tantas questões que nos fazem seres complexos. As questões de gênero e sexualidade estão enredadas - com essa palavra bonita mesmo, de enredo - com corpos não normativos, corpos distintos, pensando em recortes de raça e classe. E vejo a literatura contemporânea se preocupando cada vez mais nisso.”
É com esse ponto de vista que a autora vai participar da mesa Inventar Futuros, no dia 9 de setembro. O protagonismo LGBTQIA+ está presente em todas as obras da autora gaúcha, desde Amora. O livro rendeu outro prêmio Jabuti, na categoria Conto, com uma série de histórias de amor entre mulheres. A proposta de dar visibilidade ao amor entre lésbicas e mulheres bissexuais se mantém em Extinção das Abelhas, outra obra distópica lançada pela autora e que a aproximou de um público mais amplo.