Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

Por Agência Brasil

A comunicóloga Thamirys Nunes já havia se conscientizado de que precisava apoiar sua filha trans. Seu companheiro e pai da criança, também. Mas se dentro de casa estava garantido que o crescimento de sua filha contaria com amor e suporte de que toda criança necessita, a mãe logo compreendeu que, do lado de fora, havia muitas ameaças para que Agatha, hoje com 8 anos, pudesse viver sua identidade plenamente.

"No Paraná, naquela época [2019], não podia ter nome social de crianças trans no RG, só no de adultos. E eu fui fazer uma viagem de carro para São Paulo e tive que voltar de ônibus. No embarque, o motorista falou que aquele documento que eu tinha não representava a criança que estava comigo. Eu falei que ela é uma menina trans, mas ele insistiu que o documento era de um menino, e que eu estava com uma menina. Enfim, foi uma hora e meia de gritaria na rodoviária, tendo vários problemas e dificuldades, até sendo acusada de ter sequestrado ela", lembra Thamirys. "Eu comecei a entender que algumas coisas são muito específicas da pauta da criança e do adolescente trans, e que ainda não tínhamos nenhum olhar sobre isso."

Essa consciência foi se somando a uma percepção de que mesmo a rede de proteção à criança e ao adolescente e as entidades de defesa dos direitos LGBTQIAP+ não estavam preparadas para orientar mães de crianças trans a lidar com dificuldades do dia a dia, que podem ir da matrícula à escola a um embarque para viajar, como no exemplo relatado. Thamirys conta que foi denunciada para o conselho tutelar por uma unidade básica de saúde, que a acusou de induzir a identidade de gênero de sua filha. Depois disso, cinco escolas negaram a matrícula dela, porque disseram que não aceitavam crianças trans. Ao tentar denunciar ofensas à polícia, a ativista lembra ter ouvido do delegado que se tratava de um insulto simples, e que não era transfobia porque ela não era uma pessoa trans. Ficou cada vez mais explícito que aceitar a ausência de direitos não era uma opção.

"A gente entendeu que isso era tão essencial para a qualidade de vida da minha filha como ter comida em casa", resume ela, que lançou o livro Minha Criança Trans?, em 2020. "Muita gente chegava para mim e perguntava: 'você já tentou isso? Você já tentou aquilo?' E eu queria que as pessoas soubessem que eu já tinha tentado tudo, e que, de fato, eu tinha uma criança trans. Não era modinha, não era um desenho, nem era nenhuma influência externa."

Minha Criança Trans

A publicação do livro fez com que outras mães e pais se aproximassem, criando uma comunidade que começou ao redor das discussões escritas por ela, mas ganhou forma como espaço de mobilização política até que, no ano passado, Thamirys e um grupo de 580 famílias fundaram a organização não governamental Minha Criança Trans.

Mães pela Diversidade

A trajetória de Thamirys e a da ONG Minha Criança Trans é parecida com a das Mães pela Diversidade, grupo formado principalmente por mulheres que são mães de pessoas da sigla LGBTQIA+ e que reivindicam os direitos de seus filhos sem tirar seus protagonismos. É o caso da professora de educação infantil Maria Cecília Castro, mãe do Caio, de 13 anos, que sempre se incomodou com roupas femininas e com o nome com que foi batizado. Pesquisadora do tema em sua dissertação de mestrado, ela conta que estudar não facilitou tanto as coisas para a maternidade.

A professora Maria Cecíclia Castro, coordenadora do Mães pela Diversidade no Rio de Janeiro, com o filho Caio, de 13 anos - Fernando Frazão/Agência Brasil

"Ele sempre se desenhou e fez seus autorretratos como um menino, e eu conversava pra entender e ele dizia sempre, desde muito pequeno, que gostaria de ter sido menino, que gosta das coisas de meninos, que ele era forte. E eu fazia um movimento de mostrar grandes mulheres, mulheres fortes, como a própria Rita Lee, a Frida, mulheres de luta, vanguarda, liberdade, e ele dizia que não era uma mulher guerreira e forte, que era um menino”, lembra a professora, que mora em Niterói, no Rio de Janeiro. “Quando ele entra na escola, ele não queria usar o nome dele de registro. E ele teve uma estratégia muito inteligente de pedir para os amigos chamarem pelo sobrenome. E chamavam ele de Pereira. Me deu um susto como ele se organizou para se sentir um menino trans. E, entre os meninos, não tinha preconceito. Os colegas sempre o acolheram de uma forma muito afetuosa.”

Durante a pandemia, ela conta que Caio se sentiu muito perturbado pelo isolamento, com momentos de agressividade. Foi então que o filho mostrou a ela uma carta que tinha escrito para si mesmo no futuro, em um exercício de cápsula do tempo proposto pela escola.

“Ele abre essa carta, e, nela, ele já se chama de Caio. Isso me chocou, porque é uma carta linda e emocionante. Eu lembrei muito da história do João Nery, conhecido como o primeiro homem trans a fazer uma cirurgia. E, a história dele, ele conta em um livro chamado Uma Viagem Solitária, e eu lembrei de todo o sofrimento do João. E, aí, eu falei pra ele: ‘Filho eu queria que você soubesse que a sua viagem não vai ser solitária. Você não vai estar sozinho’”, lembra ela, emocionada.

Luta coletiva

A chegada ao Mães pela Diversidade, em 2020, se deu na busca por entender melhor como colocar na prática da maternidade os conhecimentos que ela já tinha por meio da jornada acadêmica. E também para esclarecer dúvidas sobre a própria transição de gênero e suas questões de saúde e documentação. Na ONG, ela se somou a um coletivo de cerca de 2 mil mães - e alguns pais - que se dividem em grupos de trabalhos e acolhimento ligados às identidades de gênero e orientações sexuais de seus filhos e também às suas especializações profissionais, quando podem ajudar uns aos outros.

“Aí, a minha vida muda completamente. E eu aprendo muito com essas mulheres”, conta ela, que a partir do grupo encontra profissionais de saúde especializados e sensíveis à transgeneridade e descobre o que precisa fazer para resolver questões como a mudança do nome do filho no diário escolar. “O importante disso tudo é como vamos acolher nossos filhos, filhas e filhes. E que as mães comecem a pensar que amor não tem negociação.”

A atuação coletiva em manifestações, audiências públicas e movimentos que defendem os direitos de seus filhos ajuda também as mães a se fortalecerem contra um discurso de culpabilização, que ela descreve como frequente. “A gente escuta muito 'foi você que criou errado. A sua criação deu errado. É uma família desestruturada. Existe algum problema que tem que ser investigado'. Não se entende que isso é da pessoa, e se diz que isso é um problema que tem que ser corrigido”, critica Maria Cecília. “A gente faz uma luta para que outras famílias que têm dificuldade de fazer esse acolhimento saibam que está tudo bem, que não é um problema, que não é um desajuste, e que o amor é o pilar de todas as relações. É uma organização que não tem cunho partidário, religioso nem a pretensão de falar pelos filhos. O acolhimento dessas famílias é o que nos move.”

Maria Cecília reconhece que todo o seu esforço construiu um ambiente de proteção e acolhimento para o filho dentro de casa, mas que a militância mostra todos os dias que o mundo não é um lugar seguro para pessoas trans. “O medo é latente a qualquer mãe. E, quando você tem um filho trans, esse medo é muito mais potencializado. Todos os dias eu temo pela integridade física do meu filho. Mas eu não posso segurá-lo numa gaiola. Então, o meu papel é o de fortalecimento, é um trabalho para que entenda os seus direitos, crie uma rede de apoio que vai estar com ele, que ele saiba o que tem que fazer se sofrer preconceito, e mostrar que ele não está sozinho. Ele tem a mim, à família dele, e a organizações como o Mães pela Diversidade. Meu trabalho é falar para o Caio que ele é um menino trans, é um menino lindo, é um menino que não tem problema nenhum e que ele precisa estar atento e forte.”

Solidão materna

A mobilização das Mães pela Diversidade na Parada LGBTQIA+ de São Paulo foi o que permitiu que a advogada Regiani Abreu as encontrasse. Mãe do menino trans Luca, que hoje tem 14 anos, ela descreve que, na época da transição, lidava com uma intensa solidão ao não saber como conduzir uma situação da qual ela achava saber tudo, já que estava na terceira experiência como mãe.