Agência Brasil: Tornar a Funarte mais conhecida da população brasileira passa pela diversificação regional das políticas públicas? Em não focar excessivamente no eixo Sul-Sudeste?
Maria Marighella: Sim, falamos em descentralização regional. Hoje, há uma expectativa imensa do Norte na conexão dessas políticas. A gente sabe que o Brasil é um país muito desigual, com oportunidades muito desiguais. E você não consegue promover igualdade, equidade e justiça social sem política pública. Mas eu falaria não só em relação às regiões. Eu falaria também numa desigualdade entre territórios, entre o que é centro e o que é periferia. A gente está falando de desigualdades de gênero, de desigualdades raciais. Quando a gente fala, por exemplo, das artes indígenas, tem um passivo enorme sobre esse tema.
Então, é preciso olhar a nacionalização não só na sua dimensão regional, mas também na dimensão redistributiva. A gente tem uma superconcentração no Sudeste, por exemplo. Mas a gente não está falando de todo o Sudeste. Está falando de dois estados, de duas capitais, dos centros dessas capitais. Os nossos desafios não são apenas regionais. Eles têm camadas muito mais complexas.
A gente está falando de políticas para as artes nas infâncias também. Vivemos agora uma crise relacionada à violência no ambiente escolar, mas nós não falamos que muitas vezes a infância e juventude brasileira estão sendo bombardeadas por um conteúdo que a gente não tem controle. Não temos uma política de composição de um conteúdo cultural e artístico. Estamos falando de uma população com deficiência que vive e não tem o direito a fluir ou produzir arte, porque a gente tem equipamentos e políticas radicalmente capacitistas.
Precisamos reivindicar outros componentes, para que realmente façamos essa cultura que é absolutamente democrática na dimensão do fazer. Ou seja, todo ser vivente é um ser produtor de cultura. Ela está em todos os lugares. É o que Antônio Pitanga dizia: “De onde eu vim, não tinha nada, mas nesse nada, tinha cultura”. É sobre transformar esse saber tão nosso que está em todo lugar em um direito. E isso precisa ser mediado pela política pública.
Agência Brasil: Como está o cronograma em relação ao retorno da Funarte para o Palácio Capanema, aqui no Rio de Janeiro? Já existe uma previsão de conclusão das obras?
Maria Marighella: Sim! Voltaremos! Recebemos uma mensagem esta semana que até dezembro o palácio estará apto a nos receber. Primeiro queria celebrar muito, porque isso significa celebrar também a volta do Minc e a forma como a ministra Margareth Menezes está conduzindo esse sistema. Queria celebrar muito o Iphan também, que assumiu essa responsabilidade de acelerar a obra. O Palácio Capanema até outro dia estava ameaçado de ser vendido. Um patrimônio do modernismo brasileiro ameaçado por um governo privatista. Foi a força da sociedade civil que fez com que esse prédio não fosse vendido e continuasse como um patrimônio nosso. A Sala Sidney Miller, que é uma sala da Funarte, já está reformada. A assembleia dos servidores, que é uma tradição, será na sala. É uma tentativa de nos aproximarmos gradativamente do Capanema. Temos uma expectativa de fazer uma “Funarte em obras”, de voltar gradativamente algumas atividades, de promover uma nova construção da política e dos pensamentos.
Agência Brasil: Historicamente, questões estritamente econômicas costumam ganhar destaque nas transições de governo. De que forma políticas relacionada à cultura e às artes também podem contribuir nesse campo?
Maria Marighella: Eu acho muito importante tratar da dimensão econômica da cultura. A ministra Margareth Menezes falou outro dia de uma coisa muito bonita, que a cultura é uma mina de ouro do Brasil. Em um país severamente marcado por uma crise econômica, sem dúvida a cultura é um vetor do desenvolvimento econômico que pode ser ampliado. Com pouco investimento, você tem muito retorno. Os números são muito positivos em relação ao investimento e ao retorno dessa dimensão. Só que eu gosto muito de pensar naquela frase de Conceição Tavares: uma economia que não é redistributiva, ela interessa muito pouco ao desenvolvimento de um país. Eu gosto de pensar assim na dimensão econômica, mas ela não pode estar desassociada da dimensão redistributiva. Eu gosto de pensar que a cultura é uma riqueza, mas, como toda a riqueza, ela precisa ser redistribuída. Isso é muito importante em um país que viveu crises diversas – social, política, ambiental, sanitária e econômica.
A atividade cultural move bilhões no mundo. Mas não necessariamente essa dimensão redistribui. Muitas vezes há dimensões que colonizam e são concentradoras. Ao passo que a gente precisa valorizar cultura. Uma política para as artes precisa pensar não só no potencial de fomento, mecanismo de indução, mas também nas leis de amparo aos trabalhadores das artes. As questões trabalhistas, previdenciárias e de proteção social. Organizar esse sistema e fazer com que ele seja sustentável, amoroso e solidário é um desafio do século 21.
Agência Brasil: De que forma a memória do seu avô, Carlos Marighella, e de tudo o que ele representa na história do país, atravessa a sua própria trajetória? De que forma ele faz parte da construção da sua identidade?
Maria Marighella: É uma pergunta que, claro, sempre me fazem. E eu mudo a resposta, às vezes, porque estou sempre sendo surpreendida por novas dimensões. A gente nunca para de pensar sobre nós mesmos no mundo. As pessoas perguntam: “Marighella é um peso”? E eu digo: “Não, Marighella é um chão”. É algo sólido que sustenta, não pesa. É muito importante se sentir raiz de uma árvore boa do Brasil. Raiz, uma ancestralidade na dimensão da natureza de uma árvore boa. E é óbvio que quando você tem isso, não é um peso, é um chão, é um fundo, é um horizonte, é uma orientação quando tudo está muito difícil. É ter a quem recorrer em uma dimensão de ancestralidade. É muito importante, é uma força suplementar.
Óbvio que não é apenas isso. É uma responsabilidade imensa. Não se anda impune pelo mundo quando se sabe tanto. É impossível ler uma sessão da admissibilidade do impeachment e não entender que nós estávamos ali avançando por um abismo, um esgarçamento da democracia brasileira. Por isso que o bolsonarismo me indignou todos os dias, mas ele nunca me espantou. Então, a responsabilidade com a memória e com essas informações da história nos dá um horizonte de responsabilidade muito profundo e nós não pretendemos recuar dessa responsabilidade com o país. E acho que, enquanto o Brasil precisar reencontrar com a sua história, Marighella será esse horizonte que nos orientará.