Histórias indígenas ocupam centro da programação do Masp em 2023
Por Agência Brasil
O Museu de Arte de São Paulo (Masp) inaugurou nesta sexta-feira (24) três novas exposições temporárias. Todas elas têm olhar voltado às histórias indígenas, tema que foi escolhido para a programação do museu durante todo este ano de 2023 e que pretende apresentar a diversidade e complexidade dessas culturas, além de discutir o silêncio da história oficial da arte em relação a essa produção artística.
“O ano de 2023 é dedicado [no Masp] aos povos indígenas e às artes indígenas. Particularmente considero que é um passo muito grande de reconhecimento das artes e dos saberes indígenas, que historicamente foram excluídos e estiveram à margem dos museus, e hoje estão sendo convidados para participar dessas instituições, particularmente do Masp”, disse Edson Kayapó, curador adjunto de arte indígena do Masp, em entrevista à Agência Brasil.
Uma das mostras abertas é Carmézia Emiliano: a Árvore da Vida, com pinturas que retratam o cotidiano da comunidade da artista indígena macuxi. A segunda, e maior delas, é Mahku: Mirações, que apresenta pinturas, desenhos e esculturas produzidas pelo grupo de etnia huni kuin. Na sala de vídeo do museu são exibidos curtas do coletivo Bepunu Mebengokré. “São exposições que inauguram o ano de histórias indígenas [no Masp]. Elas abordam diferentes mídias, suportes e linguagens dessa produção, revelando a diversidade que está contido nas histórias indígenas, histórias que o Brasil deixou de olhar com consistência durante muito tempo”, disse Amanda Carneiro, curadora assistente.
Esta não é a primeira vez que as culturas indígenas ocupam os espaços do museu. Ao longo de sua história, o Masp organizou diversas exposições com objetos e registros de comunidades localizadas no território brasileiro tais como a Exposição de arte indígena (1949), Alguns índios (1983), Arte karajá (1984), Índios yanomami (1985) e Arte indígena kaxinawa (1987). Em 2019, o Masp também chegou a ter sua primeira curadora indígena, Sandra Benites. “Nos anos 70, o museu abrigou uma série de exposições de arte indígena. Mas agora é um novo momento. Esse é um ano todo dedicado às histórias indígenas, mas muito mais voltado para a produção de arte indígena contemporânea, baseada em outros marcadores. Agora estamos olhando atores e agentes que têm sua identidade e seu estilo”, disse Guilherme Giufrida, curador do Masp.
Carmézia Emiliano
Chamada de Carmézia Emiliano: a Árvore da Vida, a exposição apresenta 35 pinturas sobre tela produzidas pela artista, oito delas inéditas e desenvolvidas especialmente para a mostra. As pinturas figuram e refletem paisagens e o cotidiano da comunidade da artista indígena macuxi, povo que se localiza principalmente na Maloca do Japó, Normandia, no estado de Roraima. A curadoria é de Amanda Carneiro.
“A árvore da vida, também chamada de wazaká, é tema muito significativo na produção da Carmézia, se liga a Macunaíma, romance muito conhecido por nós, e fala de um mito em que uma árvore frondosa foi derrubada e tem seu tronco transformado no Monte Roraima. Isso virou o mote da exposição e fala dessa capacidade de renovação e de perpetuação dos saberes e das vivências indígenas”, disse a curadora.
Autodidata, Carmézia nasceu em 1960 e começou a pintar motivada pelo impacto que teve ao visitar uma exposição de arte em Boa Vista. “A Carmézia Emiliano é uma artista macuxi que começou a sua produção na década de 90 e que produz pinturas, sobretudo, sempre ligadas a temas de vida comunitária e dessa relação de profundo respeito entre os macuxis e a natureza”, explicou a curadora. Sua pintura traz cores vivas, muito movimento e elementos de mitos e saberes macuxis.
A exposição começa com um autorretrato feito pela artista, em que ela aparece pintando o Monte Roraima. Esse quadro compõe o primeiro dos sete núcleos com que os trabalhos de Carmézia estão sendo apresentados na mostra. Há também núcleos dedicados às danças, às manifestações lúdicas, à coletividade, às representações da fauna e da flora, aos rios e à transmissão dos saberes. “Eles [quadros] foram divididos em temas que são mais trabalhados pela artista como, por exemplo, a figuração do Monte Roraima; a dança do parixara, uma celebração que acontece em comemoração à colheita da mandioca; as brincadeiras ligadas ao cultivo; as formas de transmissão de saber; e a relação da vida comunitária, entre outros”, afirmou a curadora.
O Masp vai também publicar um catálogo com reproduções de trabalhos produzidos pela artista, além de ensaios desenvolvidos especialmente para essa exposição, que estará em cartaz até o dia 11 de junho.
Coletivo Bepunu Mebengokré
A produção de grafismos nos rituais de pintura corporal é retratado em dois curtas apresentados na sala de vídeo do Masp. Produzidos pelo coletivo Bepunu Mebengokré, os curtas abordam desde a extração dos pigmentos até os sentidos simbólicos e ancestrais dessas práticas. Os vídeos serão apresentados até o dia 18 de junho, no segundo subsolo do museu. A curadoria é de Edson Kayapó, que também é curador adjunto de arte indígena do Masp.
O coletivo é liderado pelo jovem cineasta Bepunu Kayapó, que tem assumido protagonismo na apresentação das histórias e das ancestralidades do povo mebengokré e é um formador de novos cineastas. Bepunu é filho do cacique Bepkaeti e mora na aldeia Moikarakô, localizada no município de São Félix do Xingu, sul do Pará. “O coletivo é gerado nesse movimento de formação de cineastas indígenas para pensar as questões do povo mebengokré”, disse o curador, que também é mebengokré. “A nossa arte tem muito desse objetivo de mostrar quem somos nós, o que fazemos, que línguas falamos, quantos somos e como vivemos”, disse.
O primeiro curta, Menire djê: grafismo das mulheres Mebengokré-Kayapó (2019), narra o processo de produção da tinta de jenipapo, mostrando desde a colheita até a mistura com o carvão moído para dar a pigmentação e consistência adequadas para ser aplicada no corpo.
O segundo curta, Mê’ok: nossa pintura (2014), apresenta uma série de entrevistas e registros com pessoas que cresceram com a pintura do jenipapo e urucum feita por suas mães.
“As mulheres são, por excelência, as produtoras das tintas de jenipapo e de urucum e são as que produzem a pintura corporal”, disse o curador. “Um dos filmes exibidos é mais curto e focado no papel das mulheres nesse movimento de produção das tintas e das pinturas. O outro traz mais elementos vinculados às tradições, a ancestralidade e às cosmologias”.
Mahku
Até o dia 4 de junho, o segundo subsolo do museu apresenta a maior exposição dedicada ao coletivo indígena Mahku, grupo de etnia huni kuin que vive no estado do Acre, na fronteira com o Peru. A curadoria é de Adriano Pedrosa, Guilherme Giufrida e Ibã Huni Kuin. “Essa é a primeira grande retrospectiva individual desse coletivo”, afirmou Giufrida, em entrevista à Agência Brasil.
A exposição celebra os dez anos do grupo, que surgiu oficialmente em 2013, embora tenha iniciado seus trabalhos bem antes, no início dos anos 2000, nos cursos de licenciatura indígena da Universidade Federal do Acre. “Naquele momento, por meio de oficinas universitárias, muitas práticas que são orais do povo huni kuin começaram a ser traduzidas em papéis e em desenhos, como se fossem partituras”, explicou o curador.
A mostra Mahku: Mirações apresenta cerca de 110 pinturas, desenhos e esculturas, que expressam as traduções de cantos, mitos, história da ancestralidade e visões do grupo. “A matéria-prima do trabalho do Mahku são as mirações - como eles chamam e que dá nome à exposição - que experienciam e visualizam nos rituais de ayahuasca, chamados de nixi pae”, acrescentou.
Nixi pae são as bebidas sagradas, que surgem do mito da jiboia, animal que está muito presente nas pinturas feitas pelo grupo e que é considerada o ser da transformação. O mito narra o encontro de Yube Inu, um homem indígena, com Yube Shanu, a mulher-jiboia. O homem indígena se apaixona por ela e passa a viver junto ao povo da jiboia. Ali, ingere a bebida sagrada e experimenta as mirações. Por um momento de ciúme de seu sogro, devido ao conhecimento adquirido, Yube Inu foi mordido pela jiboia e acabou adoecendo, mas, antes de morrer, retorna ao povo de origem e ensina a receita da bebida. “Na verdade, esse é o momento em que o humano atravessou para o universo da jiboia e conheceu seu mundo, aprendeu a receita da bebida e a visualizar o mundo a partir desse paradigma”, afirmou o curador.
As obras apresentadas nessa mostra têm grandes dimensões e cores saturadas, sempre em tons vibrantes e intensos. A cor remete ao universo psicodélico presenciado pelos artistas durante os rituais com a bebida da ayahuasca. As imagens são ricamente carregadas de elementos, com jiboias e jacarés aparecendo com muita constância em cada tela. Há também obras feitas especialmente para o Masp, dedicadas a representar a Avenida Paulista bastante colorida, vista de cima e com prédios e carros deitados. Um olhar dos povos indígenas sobre o mundo urbano.
Outro destaque dessa exposição é um mural pintado em cores vibrantes nas laterais da rampa vermelha do museu, que interliga o primeiro e o segundo subsolos. “É muito comum que eles apresentem também pintura mural, feita especialmente para a arquitetura daquela galeria, algo que depois é desfeito”, disse Giufrida. “Tivemos a ideia de convidá-los a pintar a própria rampa. Foram feitas aprovações no Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e no Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico] e foi permitida essa intervenção provisória de um ano. É uma pintura mural de 200 metros quadrados, somando-se todas as faces da rampa. O grupo veio completo do Acre para fazer essa pintura. Foi um trabalho bem árduo e acho que será bem impactante para o visitante”.
Além das pinturas, esculturas, desenhos e do mural pintado na rampa, a exposição também vai apresentar alguns cantos huni khuin, gravados e traduzidos para português e inglês.
Mais informações sobre as mostras podem ser obtidas nosite do museu . O Masp tem entrada gratuita às terças-feiras.