Praça Ramos de Azevedo, centro da capital paulista. Ladeado por duas ruas estreitas, está o suntuoso prédio do Theatro Municipal de São Paulo. Da escadaria externa, uma mulher entra no teatro, ainda fechado para o público, com um livro em mãos. Da escadaria acarpetada do saguão principal, entre estátuas de mármore, ela abre o livro e começa a recitar Ode ao Burguês, conhecido poema da obra Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade. A voz potente, ouvida por poucos, ecoa pelos corredores do prédio que, 100 anos antes, ouviu pela primeira vez esta mesma poesia.
Além de Mário, nomes hoje conhecidos do grande público, como o escritor Oswald de Andrade, o compositor Heitor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e os artistas plásticos Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro, participaram da Semana.
Marcada por controvérsias, a Semana de 22 é ainda hoje objeto de estudo para artistas e pesquisadores que, de diversas formas, refletem sobre os processos artísticos propostos pelos primeiros modernistas, também chamados de modernistas canônicos. De um lado, estão pesquisadores que refletem a Semana como um grande momento de ruptura para as artes no país; de outro, estudiosos que defendem que a Semana foi somente um evento entre os diversos espaços de discussão e criação sobre o modernismo espalhados pelos estados brasileiros.
Assim como Bandeira, Mário e Oswald também foram vaiados. Mário por recitar Ode ao Burguês e Oswald pela leitura do trecho da obra Os Condenados.
Na música, um dos principais expoentes foi o maestro Heitor Villa-Lobos. Desde 1914, com o lançamento de Danças Africanas, o compositor já criticava o modelo de produção europeu. Os bailados Amazonas e Uirapuru, ambos de 1917, firmam o compromisso do autor em unir a música erudita da época com as tradições do folclore e da música regionalista brasileira.
Para o maestro Júlio Medaglia, a criação de Villa-Lobos não partiu do nacionalismo, e sim, de grandes estudos. “Se você conhece as músicas de Villa-Lobos, da segunda década do século 20, parece Strawinski, Ravel... Ele se informou na cultura ocidental da época, muito para depois elaborar então o nacionalismo. Por isso que criou relacionamento, polêmica, entre a cultura universal e nacional, em vez de fazer uma coisa provinciana. A música dele teve universalidade”, disse.
Nas artes plásticas, as obras de Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, John Graz e Victor Brecheret também causaram impacto pelo traço e cor diferenciados, mas, de acordo com José de Nicola, a recepção do público foi melhor.
“Você tinha as obras do Brecheret que, em termos de artes plásticas, foi o grande nome. O nome que encantou todos os participantes da Semana. O pessoal entrava por essa porta, andava por esse salão que nós estamos e se deparava com coisas nunca vistas em termos de arte. As esculturas do Brecheret eram uma proposta totalmente diferente do que se conhecia”, diz o pesquisador.
Apesar do traço, da forma e do conteúdo pouco convencionais, os artistas plásticos participantes da Semana ainda refletiam sobre os caminhos estéticos que adotariam futuramente. Um bom exemplo é Di Cavalcanti. Uma das obras apresentadas por ele durante a Semana, Amigos, de 1921, integra a exposição de longa duração da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ao analisar a obra, a curadora Valéria Piccoli diz que a tela é distinta de outros trabalhos posteriores do artista.
“O que a gente vê aqui é um Di Cavalcanti que não era o Di Cavalcanti que a gente conheceu depois. O que a gente vê é uma imagem muito mais monocromática e é muito mais baseada nos desenhos, nos traços, que tem a ver com esse ponto da caricatura. E que depois vai se transformar numa obra muito mais sobrevida, uma obra que tem um traço muito mais solto. E que vai dar à pintura dele outro sabor, bastante diferente”, diz.
A repercussão da Semana nos jornais foi, majoritariamente, negativa. O tom jocoso e as manifestações artísticas, até então, incompreendidas, fizeram com que a Semana fosse entendida como piada. A fúria dos jornalistas era motivo de celebração para Mário de Andrade, que os chamava de “araras”. Em carta enviada a Menotti Del Picchia, que a publicou em sua coluna no jornal Correio Paulistano, o escritor diz:
“Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. (...) Realmente, amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras.
(...) Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da “Semana de Arte Moderna” e… deixar que os araras falassem.
Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos. Mas o público já está acostumado com descomposturas: não leva a sério. O que fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se apagam mais da memória do leitor.
(Carta de Mário de Andrade a Menotti Del Picchia, publicada originalmente no jornal Correio Paulistano. Retirada do livro 1922 – A semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves)
Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimos! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.”
Cem anos depois, o escritor Jason Tércio referenda o que foi escrito por Mário de Andrade. “A Semana foi um evento bastante controverso e cheio de limitações, mas colocou o país no mapa mundi da cultura”.
O DEPOIS – Os antropófagos e o desvendar dos Brasis
“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
(Trecho inicial do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924)
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.”
Após a Semana de Arte Moderna, os artistas participantes passaram por situações diversas de encontros e rupturas. Contudo, a partir das sementes germinadas antes e durante a Semana, muitos deles passaram a incorporar, cada vez mais, práticas do universo modernista ao seu repertório artístico.
No Manifesto Pau-Brasil, de 1924, Oswald de Andrade, assim como outros modernistas de primeira geração, passou a repensar o lugar do povo brasileiro nas artes. Elementos das culturas indígena, negra e cabocla, bem como temas de natureza regional e folclórica tornaram-se mais comuns nos textos, traços, cores e sons produzidos pelos modernistas.
Mais tarde, com a publicação do Manifesto Antropófago em 1928, Oswald passa a chamar de “antropofagia” o movimento de “deglutir” a cultura estrangeira e, a partir da incorporação de elementos da cultura nacional, transformá-la em algo genuinamente brasileiro. Para o autor, a antropofagia deve ser vista como um processo diverso e coletivo de formação de uma outra identidade cultural para o país.
“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
(Trecho inicial do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado em 1928)
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.”
No que se refere ao processo de criação poético, Oswald faz uso do verso livre, do coloquialismo e da ironia para reimaginar a terra brasilis. Erro de português, um de seus poemas mais conhecidos, é um bom exemplo destas práticas, tanto na forma quanto no conteúdo.
Quando o português chegou
(Erro de Português, poema publicado em 1927, no livro Primeiro caderno de poesia do aluno, de Oswald de Andrade)
Debaixo d’uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
A professora Maira Mesquita diz que a proposta do autor é incitar uma dúvida no leitor. “Você acha que ele vai falar de alguma coisa relacionada à gramática, à língua portuguesa e, na verdade, é sobre o sujeito português que colonizou. Então, ele vem trazer uma crítica à colonização, a esse processo de aculturação”, explica a pesquisadora.
De acordo com os ideais antropófagos, Tarsila do Amaral passa a incorporar elementos da cultura brasileira nas cores e nas figuras representadas em suas obras.
Curador do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), Fernando Oliva diz que “as cores da Tarsila, chamadas cores brasileiras, terracota, maneira como ela imprimia nos azuis e ocres tons terrosos, que foram associados a uma ideia de Brasil, uma ideia de luminosidade brasileira e, portanto, parte desse primeiro modernismo que ressaltava muito essa ideia de identidade brasileira”.