O direito à participação feminina nas eleições e as fraudes que chegam ao TSE
“A desigualdade de gênero no acesso à esfera pública é fruto do período medieval, das inquisições, época indescritivelmente cruel”.
Marcela Bocayuva, advogada, sócia e fundadora do escritório Bocayuva & Advogados Associados , certificada em Law and Economics pela Universidade de Chicago e em liderança e negociação pela Universidade de Harvard coordenadora da Escola Nacional da Magistratura e mestra em Direito Público, fundadora de 2 institutos o IPREV e o NÓS POR ELAS para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade, fala neste artigo sobre a participação das mulheres na politica
A história da mulher na política perpassa uma longa jornada de reivindicações, visto que, historicamente, a desigualdade de gênero no acesso à esfera pública é fruto do período medieval, das inquisições, época indescritivelmente cruel. Ao realizar a retrospectiva histórica da construção social do papel da mulher ainda há de se notar uma sub-representatividade nos espaços de poder, além da desigualdade no âmbito da democracia, uma vez que essa parcela da sociedade tem seus direitos renegados constantemente. Por outro lado, é inegável que os caminhos trilhados pela sociedade permitiram o avanço nas discussões acerca dos direitos das mulheres, principalmente, na ocupação de seu espaço na política e o sufrágio feminino.
As dificuldades encontradas pelas mulheres na vida política se relacionam com a própria origem das relações de poder entre os sexos, construídas historicamente de forma desigual e discriminatória. No ano de 1995, na conferência mundial sobre a mulher na ONU, destacou-se que:
“A iníqua divisão do trabalho e das responsabilidades nos lares, que tem sua origem em relações de poder também desiguais, limita as possibilidades das mulheres de dispor de tempo para adquirir os conhecimentos necessários para participar da tomada de decisões nas instâncias públicas de maior amplitude. Uma repartição mais equitativa das responsabilidades entre mulheres e homens não somente proporciona uma melhor qualidade de vida para as mulheres e suas filhas, mas também aumenta suas oportunidades de moldar e formular políticas, práticas e dotações orçamentárias, de forma que os seus interesses possam ser reconhecidos e levados em conta. As modalidades e os esquemas oficiosos de tomada de decisões no nível das comunidades locais, que refletem um espírito predominantemente masculino, restringem a capacidade das mulheres de participar em pé de igualdade da vida política, econômica e social. (ONU, 1995, p. 70)”
Atualmente, as mulheres representam mais da metade da população brasileira. Nas eleições de 2022, mais de 30% das candidaturas aptas foram de mulheres, um crescimento de 2% desde o último pleito. Entretanto, a equidade de gênero na política ainda está longe de ser uma realidade.
Ao longo dos anos, diversas legislações foram implementadas para que o direito a participação feminina pudesse ser usufruído. Criada em 1997, a Lei das Eleições estabelece normas e procedimentos para o pleito brasileiro. Em seu texto, mais precisamente no artigo 10, resta uma das ações afirmativas mais importantes do país: a cota de gênero.
Decerto pode não ser a melhor solução para resolução da questão da equidade de gênero, mas é uma forma de incentivar a participação das mulheres na política. Para a Câmara Legislativa do Distrito Federal, a Câmara dos Deputados e as Câmaras Municipais, os partidos políticos podem registrar candidato “no total de até 100% do número de lugares a preencher mais 1”[1]. Em vigor desde 2009, em razão da Lei 12.034, os partidos deverão, para candidatos de cada sexo, preencher entre 30% e 70% das vagas, conforme o §3º do artigo.
Anos depois, a Lei 13.165/2015 complementou o direito à igualdade de gênero no pleito ao estabelecer a promoção e difusão da participação feminina na política. Atualmente conhecida como a Lei de Participação Feminina na Política, seus artigos determinam: a promoção de campanhas de incentivo a participação feminina na política por parte do TSE; uma reserva mínima de 5% do fundo partidário para campanhas que tenham por objetivo fomentar a entrada de novas mulheres para o campo político; e a garantia de pelo menos 10% da programação partidária para suas candidatas.
Em 2022 o Congresso promulgou a disponibilização de 30% do fundo eleitoral para as candidaturas femininas, presente na Emenda Constitucional 117.
Todo o arcabouço jurídico supracitado leva em consideração uma das principais garantias presentes em nossa Constituição Federal, o Princípio da Igualdade como fundante do Estado Brasileiro. Diversas mudanças sociais vieram após a promulgação da Carta Magna, possibilitando uma maior atuação das mulheres como protagonistas de espaços públicos.
Toda essa evolução nasceu justamente com o movimento das sufragistas, uma mobilização internacional criada no século 19 para a aquisição de direitos políticos por parte da população feminina. Neste sentido, juntamente com a evolução dos direitos humanos, através dos anos, as mulheres foram conquistando ainda mais espaço no cenário político.
Entretanto, mesmo com diversas ações afirmativas, o TSE julga constantemente casos de fraude na participação feminina. Em abril deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral afastou a decisão do TRE-CE e entendeu pela fraude no cumprimento da cota de gênero. Conforme o voto do relator, ministro Sérgio Banhos, foi possível identificar fraude, através das seguintes evidências: “votação pífia das candidatas; não realização de propaganda em redes sociais; despesas de campanha reduzidas e ausência de impressos; e outros atos efetivos de campanha”[2].
Casos como o supracitado são extremamente comuns, principalmente no caso de ausência de atos efetivos de campanha, votação pífia das candidatas ou candidaturas fictícias. Durante o julgamento dos casos ARespe 0601558-98.2020.6.26.0009 (SP) e ARespe 0601556-31.2020.6.26.0009 (SP), sobre fraudes à cota de gênero nas eleições municipais de 2020 em Andradina (SP), onde dois partidos teriam lançado candidatas fictícias, a ministra Maria Claudia Bucchianeri levantou um ponto muito sensível a toda essa questão:
“Temos percebido nos grupos focais que estudam a presença feminina na política um certo automatismo na imposição irrestrita de inelegibilidade apenas às mulheres, sem a inclusão dos dirigentes partidários. […] revitimizando as mulheres e excluindo-as ainda mais do processo político”[3].
A partir do pressuposto supracitado, as decisões devem abranger também os dirigentes partidários, uma vez que muitas das mulheres julgadas inelegíveis se encontram naquela situação mediante coação, ameaça ou em virtude do abandono do próprio partido em suas candidaturas[4].
As cotas existem para nivelar o presente déficit de representação e diminuir a desigualdade de gênero que ainda paira no Brasil. Uma das respostas para o presente problema é uma maior fiscalização das autoridades acerca das candidaturas. Para além disso, a consciência educacional deve ser levada em conta quando o assunto é o direito a participação feminina no pleito brasileiro.
Com essas reflexões, é possível notar que ao longo da história o Poder Judiciário é um grande ator na conquista dos direitos femininos, que culmina na inserção da busca pela equidade de gênero nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), de forma mais específica na meta 5.5, à luz da necessidade de se garantir a participação plena e efetiva das mulheres em oportunidades iguais de liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
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Marcela Bocayuva | LinkedIn e Marcela Bocayuva (@marcelabocayuva) Instagram
A disparidade de gênero no Poder Judiciário: por que não mais mulheres? | Exame