Não temos nada a ver com isso

Por Roberta Dalbuquerque

Estresse: a força da vida

Já contei que mudei, não foi? Mudei. Deu um trabalho horroroso achar um lugar que fizesse sentido.

Pensei que tinha encontrado o lugar do sentido duas vezes antes de assinar o contrato deste aqui,
de onde escrevo agora. Chorei nas duas quando recebi o telefonema da imobiliária que dava conta
de alguém que tinha sido mais rápido do que eu nas negociações. O primeiro doeu mais, porque eu
já tinha imaginado a vida inteira no apartamento que tinha o mesmo CEP daquele em que morei
nos últimos 13 anos. A coisa do CEP me dava uma sensação de conforto, de que por mais que tudo
fosse novo, haveria um detalhezinho de manutenção. No segundo eu já estava mais calejada,
embora a ideia de morar na rua Pernambuco também me esquentasse o peito.

Pois bem, acredita que vim parar no mesmo prédio e no mesmo andar do primeiro apartamento
que eu quis? Pois é, saí de Pernambuco, mas mantive o CEP. Cheguei no esforço de gostar dos novos
vizinhos, porta com porta, que me roubaram (drama) a casa. E de fato me pareceram uns amore no
primeiro encontro que tivemos no corredor. Um casal jovem que, dada a escolha do tapete, devem
ter enchido o apartamento de samambaias e quadrinhos geométricos a la pinterest. Santa Ceciliers
moderninhos.

O moço encontrei algumas vezes, uma foi essa do corredor e as outras no portão, roupa de
academia lá pelas 9h da manhã. A moça vejo pelo menos um vez por dia na área de serviço que dá
para a janela da minha área. Eu vivo lá. Além de cuidar das batatas doces que estou tentando
germinar para plantar (façam isso, que lindas que ficam as folhas da batata), moro sozinha duas
semanas do mês e nas outras duas divido a casa com as minhas filhas. Ou seja, nessa área aqui há
serviço a ser feito e quem tem que fazê-lo sou eu mesma.

Ela me cumprimenta todo dia, entre tímida e chateada pela proximidade da janela. Eu já conheço
quase de cór a playlist da menina. Um bom gosto danado. Da rotina, tiro o quase, sei exatamente
como funciona. Na segunda, ela lava e estende os lençóis e toalhas; na terça ela passa; na quarta lava
a roupa; passa na quinta pela manhã, sexta escuto o aspirador logo cedo. Tudo isso seguido do
barulho da pia onde lava os pratos. No fim dia, ela passa na janela e veste de novo o avental que fica
estendido exatamente em frente ao mesmo lugar em que eu estendo o meu. E segue a pia e a
playlist a encher de som as nossas cozinhas. No que se refere aos serviços, regulamos a rotina e,
como eu, todo dia ela faz tudo sempre igual. Com um mínimo detalhe de diferença: ela não mora
sozinha e há apenas um avental no ganchinho. Cadê o moço pra passar o tanto de camisa social que
eu estou vendo agorinha estendido no varal? Cadê o moço pra lavar esses pratos todos? Minha
gente. Juro, eles não passam dos 30. Moderninhos? Cadê o moço? Ah, tá na academia, claro.

Eu sei, não tenho nada a ver com isso. Mas será que não mesmo? A divisão de tarefas é somente a
pontinha do problema. Por que demorei mais de um mês para estranhar a presença exclusiva da
menina na área de serviço? Dá trabalho, mas há algo aqui que tem que mudar. Tem que procurar
um lugar de sentido. Mesmo que contratos precisem ser refeitos, mesmo que haja choro e que doa
abrir mão de alguma manutenção. Eu sei, não temos nada a ver com isso. Mas será que não mesmo?
Boa semana queridos.